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O mistério da velha vacina que parece prevenir a covid-19

Vários grupos científicos investigam se as imunizações contra a tuberculose, como a criada há um século, têm efeitos secundários que aliviam a infecção por coronavírus

Um bebê é vacinado contra a tuberculose no Níger.
Um bebê é vacinado contra a tuberculose no Níger.Juan Carlos Tomasi
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Commuters wear face masks inside the subway system amid the spread of the new coronavirus in Sao Paulo, Brazil, Monday, May 4, 2020. The state government mandated that commuters using public transportation must wear face masks starting Monday. (AP Photo/Andre Penner)
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Todos os anos, a tuberculose mata 1,5 milhão de pessoas, mais de seis vezes o que o coronavírus até agora. Entretanto, nos países mais avançados, há décadas essa doença infecciosa não mete medo. Em uma época em que os cientistas se propõem a desenvolver vacinas e tratamentos dentro de um ano e meio contra um vírus conhecido há poucos meses, ainda não há uma proteção eficaz para uma infecção bacteriana que mata humanos há milênios. Entretanto, o novo vírus, que até agora golpeou mais nos países ricos, recuperou o interesse por essa doença tida como coadjuvante.

A aparição repentina da covid-19 não deu tempo para que fossem criados fármacos específicos que a controlassem, e médicos e pesquisadores tiveram que reciclar medicamentos utilizados para outras doenças. O antiviral remdesivir, concebido para o ebola, e a cloroquina, usada contra a malária e algumas doenças autoimunes, foram administrados a pacientes com a esperança ainda não comprovada de que aliviariam seus sintomas. Entre estas soluções velhas para o novo problema poderia estar também uma das vacinas mais antigas e utilizadas do mundo, e vários ensaios clínicos já estão testando seu potencial protetor contra o novo vírus. O risco de fracasso é grande, mas a história dessa nova tentativa para deter o coronavírus mostra como é árduo o trabalho científico e como o conhecimento que gera pode nos salvar de forma inesperada.

Algumas análises observaram uma correlação positiva entre os países que usam a vacina BCG e a luta contra o coronavírus

Há um mês, Lyubima Despotova, presidenta da Sociedade Búlgara de Cuidados de Longo Prazo e Medicina Paliativa, apontava uma correlação observada entre os países mais afetados pelo coronavírus e o uso da vacina BCG (Bacillus Calmette-Guérin) contra a tuberculose. Esse profilático foi provado pela primeira vez em 1921 por Albert Calmette e Jean-Marie Camille Guérin e usado com sucesso em todo o planeta desde então. Entretanto, quando o bacilo de Koch deixou de causar estragos no mundo mais desenvolvido, a BCG desapareceu de seus calendários de vacinação. Mas não de todos. No Leste Europeu, em Portugal e na Grécia, continua sendo utilizada. Todos têm em comum cifras menos dramáticas que as de seus vizinhos europeus.

Embora a correlação observada entre o uso da BCG e o impacto do novo vírus não permita conclusões definitivas, os cientistas observaram há muitos anos que essa vacina não protege apenas contra a tuberculose. A BCG foi criada a partir de bactérias similares às humanas, mas que costumam infectar as vacas. Essas bactérias foram cultivadas para que fossem suficientemente fracas para não fazerem o inoculado adoecer, mas ainda vivas para que pudessem treinar o organismo para reagir a um ataque da bactéria real. Desde a década de 1930, começou-se a observar que esse treinamento reduzia o dano de outras doenças além da tuberculose. Um estudo do ano 2000 na Guiné-Bissau, por exemplo, estimava que esta vacina, sozinha ou em combinação com outras, poderia reduzir a mortalidade em 30% a 50% a mortalidade por todas as causas entre crianças de até 2 anos.

Federico Martinón Torres, chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Clínico Universitário de Santiago de Compostela (Espanha) e referência internacional em vacinas, conta que pesquisadores como ele têm especial interesse “nestas propriedades não específicas das vacinas”. Ele mesmo pôde aproveitar as particularidades do sistema sanitário espanhol para testar estas propriedades no caso da BCG. “Na Espanha, estivemos vacinando todos os recém-nascidos com a BCG até 1982, quando se decidiu deixar de fazê-lo. No País Basco, entretanto, continuaram até 2013”, explica Martinón Torre. Graças a esse experimento involuntário, puderam comprovar que, como sugeriam estudos anteriores, nessa região que tinha mantido a BCG a taxa de hospitalização por infecções respiratórias não relacionadas com a tuberculose era 40% menor que no resto da Espanha. Os resultados foram publicados na revista Clinical Infectious Diseases.

Um estudo na Espanha observou uma associação entre o uso da vacina e uma redução de 40% nas hospitalizações por doenças respiratórias

Mas, para os cientistas, observações desse tipo, por mais bem expostas que estejam e por mais sugestivos que sejam seus resultados, são insuficientes; “suspeitas epidemiológicas”, nas palavras de Martinón Torres, que recorda um segundo passo para entendermos por que vacinas como a BCG protegem de doenças contra as quais não foram pensadas, e por que estão sendo cogitadas para frear a covid. Na Universidade Radboud, em Nijmegen, nos Países Baixos, o imunologista Mihai Netea encontrou o mecanismo que explica as observações sobre os benefícios indiretos das vacinas. Suas pesquisas mostraram que o sistema imunológico inato, uma primeira linha básica de defesas com a qual todos nascemos, pode ser reprogramado. “Isto era uma revolução conceptual, quase um anátema”, diz Martinón Torre. “O efeito da BCG sobre o sistema imunológico é como se você treinasse para correr uma maratona, mas isso indiretamente faz que você seja melhor correndo os 100 metros do que alguém que nunca treina nada”, exemplifica.

Com esta informação, há pouco mais de um mês, o próprio Netea começou um estudo com trabalhadores sanitários, mais expostos ao coronavírus, para comprovar se a BCG tem realmente um efeito protetor. Na Austrália, Nigel Curtis, da Universidade de Melbourne, iniciou um trabalho similar com milhares de médicos e enfermeiros, e outros grupos nos EUA e Alemanha estão impulsionando ensaios clínicos com o mesmo objetivo.

A equipe da Universidade de Zaragoza, que desenvolveu uma das vacinas contra a tuberculose que se pretende testar contra o coronavírus. Da direita para a esquerda, Dessislava Marinova, Nacho Aguiló, Carlos Martín e Jesús Gonzalo.
A equipe da Universidade de Zaragoza, que desenvolveu uma das vacinas contra a tuberculose que se pretende testar contra o coronavírus. Da direita para a esquerda, Dessislava Marinova, Nacho Aguiló, Carlos Martín e Jesús Gonzalo.Carmina Puyod (Universidad de Zaragoza)

Nesta história de reutilização do conhecimento para procurar soluções ao novo grande problema, um dos capítulos mais recentes está sendo escrito por uma equipe da Espanha, numa colaboração entre a Universidade de Zaragoza e o laboratório farmacêutico Biofabri, da Galícia. Desde 2008, trabalham juntos com o objetivo de reduzir a letalidade da tuberculose com a MTBVAC, uma vacina elaborada a partir de bactérias que infectam humanos, mas atenuadas. A BCG previne as formas mais graves dessa doença em crianças, mas não consegue deter a tuberculose pulmonar em adolescentes e adultos, e vários grupos no mundo procuram alternativas melhores a essa vacina que já tem um século. No ano passado, a equipe liderada por Carlos Martín Montañés, da Universidade de Zaragoza, publicou na revista The Lancet os resultados de um ensaio, iniciado em 2015, envolvendo 36 recém-nascidos e 18 adultos de uma região da África do Sul onde a tuberculose é endêmica. A MTBVAC era capaz de estimular o sistema imunológico melhor que a BCG, embora ainda restasse muito trabalho para demonstrar sua eficácia.

Agora, como muitos outros pesquisadores do mundo, Martín e sua equipe, que enfatiza que seu objetivo principal “continua sendo a tuberculose”, procuram a forma de empregar o que sabem para paliar os danos do coronavírus. Em ensaios com ratos publicados há um mês, observaram que a MTBVAC pode produzir um efeito de treinamento do sistema imunológico como o que demonstrou Netea, e agora, com financiamento do Instituto de Saúde Carlos III, de Madri, e em colaboração com esse pesquisador romeno-holandês, irão comparar em micos a proteção contra o vírus SARS-CoV-2 propiciada pela vacina espanhola em comparação com a BCG. Num momento em que o primeiro-ministro dos Países Baixos, Mark Rutte, é visto como um ogro por sua dureza perante os pedidos de ajuda dos países do sul da Europa, cientistas espanhóis e holandeses colaboram com financiamento partilhado em partes iguais por seus Estados num projeto que poderia aliviar o sofrimento global. O experimento será feito no Centro de Pesquisa Biomédica com Primatas (BPRC) dos Países Baixos e terá resultados em quatro meses. Depois, começariam os testes em humanos.

Se finalmente a MTBVAC ou a BCG demonstram eficácia contra o os coronavírus, não serão panaceias, como quase todos os fármacos que estão sendo provados, mas poderiam reduzir o número de infecções e o risco em alguns grupos populacionais. No entanto, será preciso esperar os resultados e não transformar um benefício possível em um prejuízo real. O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom, já pediu que os países não comecem a adquirir reservas de BCG, um fármaco essencial para muitos países em desenvolvimento. “Tedros diz que não há evidência científica porque muitos países ocidentais estão paralisando o mercado de vacinas para a África”, explica Martín. “Um dos grandes problemas da covid para os países em vias de desenvolvimento é que não estão sendo cumpridos os calendários de vacinação. Na África do Sul há campanhas paralisadas e risco de que volte o sarampo”, adverte. Como no caso das vacinas, a experiência do coronavírus poderia ter um efeito indireto e ajudar a recordar que muitas doenças quase esquecidas no mundo rico continuam afligindo grande parte da humanidade.

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