Quase dentro da boca da baleia

Cada um no Arctic Sunrise tem uma história grande. É quase um navio de batalha por boas causas do mundo. Mas ninguém ali poderia imaginar que um dia enxergaria a garganta de uma jubarte, conta a jornalista em seu quarto relato de expedição na Antártida

Baleia jubarte abre a boca na Antártida.Tom Foreman (Greenpeace)

Quando a avistamos pela primeira vez, ela ainda está longe. Nosso bote se aproxima com cuidado. Tudo o que esperamos é ver qualquer coisa dela. O salto, suas nadadeiras, sua cauda. Ela tem 12 metros. No mínimo. Possivelmente alguns mais. É uma jubarte, as baleias que parecem ter asas. Estamos na Baía do Paraíso. Pela primeira vez, eu não posso imaginar nenhum nome melhor. Ao meu redor, há montanhas de gelo e neve em tons diferentes de branco e azul. Icebergs em formatos de catedrais passam por nós. Tem curvas que matariam Oscar Niemeyer de inveja. Em alguns deles, viajam pinguins. Em outros, focas-leopardo tiram a soneca da tarde. De tempos em tempos, dezenas de pinguins nadam juntos, com pulinhos sincronizados, indiferentes à comovente beleza que criam apenas por se mover. Quando o sol aparece, a água azul do mar vira prata derretida. E brilha. Como não há noite no verão antártico, as estrelas se mudam para o mar.

Outros relatos da expedição
Parte 1: Há aliens embaixo da sola dos meus sapatos?
Parte 2: É luz demais
Parte 3: Temos o direito de estar aqui?

Então, a vemos. Nós esperávamos por ela. Mas nenhum de nós esperaria por tanto. Numa vida inteira, eu jamais esperaria por tanto.

A baleia rodeia o pequeno bote, que agora está parado sobre o mar. A bordo, nós somos apenas cinco. E todos nós ficamos em pé, em solene expectativa. A baleia rodeia. E então, de repente, sem que nada possa nos preparar para esse momento, ela emerge imensamente imensa de dentro da água e abre a imensa boca tão perto que quase podemos tocá-la. Tão perto de nós que podemos sentir o seu hálito de krill e de peixe. A boca da baleia.

De trás para frente agora. A boca da baleia, tão perto que se eu quisesse poderia pular dentro dela.

Três de nós tinham câmeras e fotografavam ou filmavam. Nenhum conseguiu ângulo. As fotos deste capítulo do meu diário são de Tom Foreman, o fabuloso guia britânico especializado nos polos da Terra, que foi quem melhor conseguiu captar o momento. Precisaria ter alguém acima de nós para abarcar a cena por inteiro.

Como fotografar o que aconteceu dentro de nós, de mim, depois disso? Nós nos olhávamos e sabíamos que, para sempre, aquele momento nos uniria. Dois ingleses, uma escocesa, uma alemã e uma brasileira. Talvez um dia, quando formos bem velhos, a gente se reúna em algum lugar do mundo para recordar o momento em que quase estivemos dentro da boca de uma baleia jubarte. As pessoas vão olhar aqueles cinco velhos contando histórias uns para os outros e vão esboçar um sorriso de deboche. Só velhos contando para si mesmos histórias que nunca aconteceram.

Voltamos para o Arctic Sunrise e contamos e contamos. “Entendi como Jonas foi parar dentro da boca da baleia”, brincou a alemã Carola Rackete, referindo-se à história bíblica. A terceira no comando do Arctic Sunrise, ela economiza sorrisos e também palavras, mas jamais força e solidariedade. No ano passado, se tornou uma lenda ao aportar um navio com 53 migrantes da Líbia na ilha italiana de Lampedusa, contra a vontade do direitista Matteo Salvini. Ela os havia resgatado de um bote à deriva. Foi presa e depois absolvida porque a juíza disse que, como capitã, ela fez exatamente o que devia para proteger a vida de seus passageiros. Cada um no Arctic Sunrise tem uma história grande. É quase um navio de batalha por todas as boas causas do mundo.

Baleia jubarte avistada na expedição do Arctic Sunrise, na Antártida. Tom Foreman (Greenpeace)

Depois de algumas horas no mar antártico, nós não esperávamos mais encontrar uma baleia. Seria excessivo, já tínhamos tido demasiado de paraíso. A cientista Kirsten Thompson, uma escocesa de olhos de intenso azul e sorriso permanente, insistiu. “Eu fui dormir ontem com caudas de baleia girando no meu cérebro”, ela disse. “Posso sentir nos meus ossos que vamos encontrar alguma coisa.” Ela sabia. Mas nem Kirsten, que passa dias escutando a língua das baleias com um hidrofone enfiado no oceano, poderia imaginar que desta vez poderia enxergar a garganta de uma jubarte.

Eu me sentei na mesa da cozinha, atrás de uma pilastra, com uma xícara de chá entre as mãos quase congeladas. Minha hipotermia era na alma, e ela se manteve até tarde da noite. Acolher essa experiência exigiu todo o calor armazenado em mim. Nenhuma roupa especial poderia me proteger não do verão invencível de que falava Albert Camus. Não. Não é isso. Dentro de mim a boca da baleia no verão antártico implantou um tipo de inverno. Sinto que para sempre haverá dentro de mim um espaço interno em que nada nascerá, mas tudo será vivo e azul. É o espaço da boca da baleia.

Quem acompanha esse diário sabe que eu vinha me preparando para o momento em que a baleia se enfiasse em mim. Temia que ela não coubesse. Agora estou condenada a viver profundamente grata por abrigar dentro de mim seres que não cabem. Talvez, quando vocês me encontrarem, verão uma forma estranha, não humana, avançando para além do meu corpo. São as nadadeiras em forma de asas daquela baleia jubarte.

O sueco Gustaf Skarsgard, o Floki da série Vikings, comentou no domingo, quando observávamos algumas delas exibirem sua cauda no oceano. “Há alguma coisa com as baleias.” Há. Tenho tentado entender o que é. Cheguei à conclusão de que elas nos lançam num outro tempo. Num outro tempo mesmo. Se tentássemos converter o salto da baleia numa partitura musical, não teríamos as notas. Ou até teríamos as notas, mas não haveria como reproduzir o tempo em que as notas são tocadas. É algo não humano, que vem de uma outra linguagem e de uma outra cultura. E sentimos isso nas nossas entranhas, mesmo que não saibamos explicar.

Cauda da baleia jubarte encontrada no mar antártico. Tom Foreman (Greenpeace)

A baleia jubarte se levanta, eleva o dorso, abre as nadadeiras e salta. Está caçando. É um voo em câmera lenta, mas ao mesmo tempo quebra o compasso. Queria lembrar mais das minhas aulas de música para explicar melhor. Meu canto preferido na Amazônia, onde vivo, é o dos macacos guariba. É extraordinário. Mas eu sinto que eles e nós somos parte do mesmo mundo, pertencemos às mesmas notas. A baleia, não. Sua escala musical é outra. Ela canta, e seu canto é intrincado, complexo. Mas este canto ainda não ouvi. Me refiro ao tempo do salto e ao som que ele faz.

Ela salta, voa, e o universo parece que se desloca. A baleia está aqui e não está. Sabemos que ela está, porque a vemos, mas ao mesmo tempo é impossível que esteja, porque o tempo e o som são impossíveis. E então nos condenamos ao silêncio. Porque, antes de mergulhar na escuridão do oceano profundo, deus esteve entre nós.

(Agora eu paro de escrever para limpar nove banheiros. A vida é assim. Da garganta da baleia à cloaca da humanidade.)

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum

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