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Debandada da Capes já soma 80 pesquisadores e expõe queda de braço por novos cursos de pós

Coordenadores e consultores da agência que fiscaliza os cursos de mestrado, doutorado e pós deixam cargos à disposição por discordar da forma como a avaliação tem sido feita. “Éramos referência mundial em avaliação, e agora estamos sob risco”, critica especialista

Gregório Pacelli Bessa, coordenador geral do grupo de avaliação de Matemática e Probabilidade da Capes, renunciou à função. Ao todo, 80 coordenadores e consultores pediram desligamento da entidade.
Gregório Pacelli Bessa, coordenador geral do grupo de avaliação de Matemática e Probabilidade da Capes, renunciou à função. Ao todo, 80 coordenadores e consultores pediram desligamento da entidade.Marília Camelo

Após o anúncio de demissão coletiva no Inep, responsável pela prova do Enem e avaliações da Educação Básica, uma nova debandada, desta vez na Capes, expõe um fosso cada vez maior no Ministério da Educação (MEC). Em uma semana, 80 coordenadores e consultores apresentaram renúncia coletiva de suas posições de avaliadores das áreas de física, matemática e, agora, também de química, conforme documento ao qual o EL PAÍS teve acesso. A Capes, sigla para Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, é responsável por fiscalizar os cursos de mestrado, doutorado e pós-doutorado do Brasil. A avaliação dos cursos atribui notas que vão de 1 a 7, atestando ou desqualificando a qualidade dos programas de pós-graduação. É essa análise que dá um retrato de como está a pós-graduação no país. São observados quantos artigos saíram em revistas científicas, número de alunos, ex-alunos, prêmios recebidos, objetivos dos programas, e linhas de pesquisa.

A crise no Capes começou na quarta-feira passada, quando três coordenadores de física renunciaram e os 18 consultores da área, em apoio, também entregaram suas funções. Na última segunda foram 52 do grupo de matemática. Nesta quarta, outros 28, da química, se somaram. Eles acusam a presidência da entidade de fazer pressão pela aprovação de novos cursos, incluindo educação à distância, o que beneficiaria especialmente o setor privado. Ao mesmo tempo, a Capes, presidida por Cláudia Mansani Queda de Toledo, não se esmera em destravar na Justiça uma ação que questiona os métodos de avaliar cursos já existentes. Para eles, é preciso primeiro avaliar e, com base nestes resultados, aprovar novos cursos. Para a Capes, porém, as ações não estão interligadas, o que abriu uma zona de conflitos no órgão ligado ao Ministério.

A avaliação em debate se refere à produção científica do país feita entre 2017 e 2020 em 4.146 programas de pós-graduação, de todas as áreas. Ela ainda não foi concluída, em parte por causa da pandemia, e em parte porque houve judicialização do processo. Em setembro deste ano, a Justiça do Rio de Janeiro suspendeu a avaliação, após pedido de liminar do Ministério Público do Estado. A denúncia viu critérios ilícitos no processo, porque eles haviam sido alterados pelo Governo durante o período de análise dos cursos. Sem a avaliação, o país fica sem saber a evolução da qualidade da pesquisa no Brasil, e onde deve-se investir mais ou cortar recursos. Em última análise, o raio-x da produção acadêmica e científica fica obscuro e o caso, sem data para ser resolvido.

Com a paralisação, a avaliação não vai mais ocorrer nos mandatos de quatro anos dos atuais grupos de análise, que expira em abril. E a presidenta da Capes, Claudia Toledo, ainda não sinalizou se vai renovar os contratos. Sem isso, será preciso chamar novos especialistas. “Mas o que isso sinaliza é mais sério: nunca deixamos de ter uma avaliação. É uma tradição nossa, nasceu com a Capes. Se eles paralisam algo que é tradição, cria um clima de insegurança. É como cancelar o Natal. Depois que cancelam o Natal, tudo mais pode ser cancelado”, compara Gregório Pacelli Bessa, coordenador geral da avaliação de Matemática/Probabilidade e Estatística da Capes e signatário da carta da área.

Roberto Imbuzeiro, coordenador-adjunto, explica que a Justiça não entendeu os critérios. Ele afirma que o sistema de avaliação da Capes passou por mudanças de 2017 a 2020, mas que as regras estavam criadas antes do quadriênio. “É como se a Capes falasse o que vai cair na prova, mas não o que vai ter em cada questão, nem quanto vai valer cada uma delas”, compara. “A Capes dá uma cesta cheia de indicadores e cada área (de coordenadores e consultores) define o peso entre elas. Isso é feito a partir de uma observação geral da área. É uma avaliação comparativa”, explica.

Para Helena Nader, vice-presidenta da Associação Brasileira da Ciência (ABC) e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), faltou conhecimento do Ministério Público e da Justiça sobre como se faz uma avaliação. Nader, que foi premiada em 2020 pela sua contribuição à ciência, critica a postura do Governo diante da paralisação dos trabalhos da Capes em função do processo aberto a pedido do MP. “Um setor da Justiça inviabiliza um país por incompreensão. A AGU [Advocacia-Geral da União] deveria ser mais incisiva na defesa. O ministro [da Educação, Milton Ribeiro] deveria ser mais pulso firme, dizendo que é assim que se avalia no mundo inteiro”, afirmou ao EL PAÍS.

Com a avaliação em suspenso, os coordenadores e consultores se recusam a endossar a criação de novos cursos de pós-graduação, o que vem sendo pedido pela presidência da entidade e já foi cobrado pelo Ministério Público do Distrito Federal. O processo, chamado de Análise de Propostas de Cursos Novos (APCN), está suspenso desde 13 de novembro de 2020 e não voltou ao calendário da entidade. Com a pressão, os membros do comitê avaliador preferiram renunciar às posições para não assinar algo que pode criar cursos sem qualidade. “Uma vez que os programas de pós-graduação são essenciais para a formação da competência científico-tecnológica nacional, a falta de qualidade dos mesmos, obviamente, pode causar danos profundos no desenvolvimento econômico e social do país”, afirmam em carta os consultores de física.

Mesmo antes da judicialização, Imbuzeiro conta que houve atrasos na condução da avaliação, em parte por falta de gestão da presidência do órgão. Cláudia Queda de Toledo assumiu em abril, tornando-se a terceira pessoa a presidir a Capes durante do Governo Bolsonaro. Formada em Direito, Toledo era reitora de um centro universitário privado em Bauru (SP), o antigo Instituto Toledo de Ensino (ITE), da família dela —e onde Ribeiro se formou em Direito em 1990. Assim que foi nomeada, em abril deste ano, veio à tona que Toledo era coordenadora de um curso de mestrado com nota baixa na avaliação da Capes em 2017 e que, por isso, teve o descredenciamento recomendado naquela época. O Conselho Superior da Capes reviu a avaliação em 2020, e o curso voltou ao sistema.

Toledo mudou algumas regras referentes à comissão de especialistas. Entre elas, estava a definição de quem poderia compor o grupo de consultores, o que só foi divulgado em agosto, e levou os coordenadores a reformularem todo o quadro da avaliação. “Se isso não configura aviltamento de avaliação, é uma tremenda falta de organização. É, claramente, falta de gestão”, afirma Imbuzeiro.

Em nota, a Capes afirmou que “tem como norte a defesa da Avaliação dos Programas de Pós-Graduação e defende a necessidade de união da comunidade científica”. A entidade afirma que há 49 áreas de avaliação, e que as renúncias estão em física e matemática –e agora, também em química–, “que justificaram o afastamento em face da abertura do sistema para pedidos de cursos novos, pois entendem que é preciso primeiro retomar a avaliação suspensa judicialmente para, só depois, abrir o sistema para pedidos de cursos novos”. Para a Capes, não há correlação entre os casos.

Educação à distância

A debandada na Capes é mais um capítulo da crise na educação. Semanas atrás tornou-se pública a batalha ideológica na educação básica, tendo como centro o conteúdo das questões do Enem. Na Capes, os pesquisadores denunciam que a disputa envolve uma mordida no bolo financeiro que o mercado de ensino superior privado representa. Os pesquisadores criticam a aprovação de novos cursos, incluindo de educação à distância (EaD), oferecidos em sua maioria por universidades particulares.

Na última proposta de criação de cursos foram apresentadas 19 programas de EaD, e nenhum deles foi aceito. Em uma reunião, Toledo criticou a decisão. Para Imbuziero, o resultado foi bom, dada a baixa qualidade das propostas. “Falamos que EaD na pós-graduação não era uma boa ideia. Não há dados que mostrem esse tipo de ensino entre as melhores pós-graduações no mundo”, analisa. “Matemática necessita contato humano, discussão. Não é algo planejado que cabe na EaD”, complementa Pacelli. Segundo Imbuzeiro, quase todas as propostas vieram de universidades privadas, algumas com fins lucrativos, que vivem de aquisições e expansão, e não refletem a mesma qualidade das filantrópicas ou públicas.

Além disso, sem a avaliação quadrienal de 2017 - 2020, o único diagnóstico possível da pós no país é o que foi concluído em 2016. “Não temos uma radiografia de como estão os programas. O que vamos pedir como critério para criar novos? É preciso saber como os cursos evoluíram desde então. É como em uma Olimpíada. A cada ano, para se classificar, os competidores apresentam seu desempenho e, nisso, se tira o tempo mínimo para entrar na competição. Mas todo ano este tempo muda. Criar novos cursos só faz sentido quando soubermos o que tem na área”, explica Pacelli.

As atuais cúpulas da Capes e do Ministério da Educação têm raízes na educação privada. Antes de assumir o MEC, Ribeiro atuou como reitor em exercício e vice-reitor da Universidade Mackenzie, em São Paulo. Quando Cláudia Toledo foi nomeada, em abril, para assumir a presidência da Capes, sua escolha foi criticada pela comunidade científica, sob a avaliação de que lhe falta reconhecimento na área. Em agosto deste ano, ela se envolveu em outra polêmica ao nomear Lívia Palli Palumbo para o cargo de diretora de Relações Internacionais. Palumbo está concluíndo o doutorado em direito na faculdade da família da presidente da Capes. Toledo é sua orientadora.

“Estamos vendo um conjunto de ações, não só na Capes, de uma gestão de país que não enxerga a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação como bens públicos. Enquanto o resto do mundo está há 21 anos se inserindo no que é a sociedade do conhecimento, o Brasil está caminhando para fora disso. Éramos referência mundial em avaliação, e agora estamos sob risco”, afirmou Nader.

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