Bukele desafia as críticas ao anunciar que continuará tomando o controle das instituições de El Salvador até que “todos caiam fora”

Europa se une a Estados Unidos e à OEA ao qualificar como “preocupante” o rumo autoritário do presidente salvadorenho, depois da destituição do procurador-geral e vários magistrados

Um protesto contra as decisões de Nayib Bukele, em San Salvador, em 3 de maio.José Cabezas (Reuters)

Nayib Bukele, o presidente de El Salvador, não se deixou abalar. A todos os críticos nacionais e internacionais que o acusam de estar construindo uma ditadura e acabar com a divisão de poderes, após sua decisão de destituir o procurador-geral e substituir os juízes da Corte Constitucional, ele respondeu com um vídeo de tom messiânico acompanhado pela frase “estamos construindo uma nova história”. Nele, uma voz em off celebra o surgimento de um novo país “verdadeiramente livre e soberano” e resume sua polêmica decisão como “um ponto de inflexão entre o velho e o novo”. O que Bukele considera “velho” são as instituições que decidiu atacar no sábado, logo após a posse dos deputados de seu partido, agravando assim uma das crises mais profundas da história recente desse país centro-americano.

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A todas as críticas Bukele respondeu envolvendo-se na bandeira do “povo” e anunciou que continuaria com a substituição de altos funcionários de instituições públicas. “O povo não nos mandou para negociar. Que saiam. Todos”, ele escreveu nesta segunda-feira, sem especificar quais autoridades ainda estão na mira do Parlamento, onde seu partido controla 61 das 84 cadeiras.

Embora o vídeo divulgado tenha servido para dar argumentos a seus seguidores para falar de uma nova era, ele não conseguiu conter a pressão internacional e a enxurrada de críticas de Governos estrangeiros, organizações de direitos humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos (OEA) perante o que consideram uma decisão preocupante que não atende nem sequer os mais mínimos requisitos estéticos. Não se passou nem uma hora desde que os deputados de seu partido, o Novas Ideias, tomaram posse no sábado —como resultado das eleições de fevereiro, que venceu por esmagadora maioria— e os juízes que algum dia o enfrentaram já estavam fora do cargo.

De Bruxelas, o último a aderir às críticas, o responsável pela política externa da União Europeia, Josep Borrell, disse estar “preocupado” com o funcionamento do Estado de direito e com a separação de poderes, bem como “com a segurança jurídica e física dos magistrados”. Dos Estados Unidos, a vice-presidenta Kamala Harris defendeu a importância de “um poder judiciário independente para uma democracia saudável e uma economia forte”, escreveu no Twitter.

Na mesma linha, o secretário de Estado, Antony Blinken, conversou com Bukele para expressar suas “sérias preocupações” e Juan González, o enviado de Joe Biden para a América Latina, resumiu o sentimento da comunidade internacional em quatro palavras: “Isso não se faz”. À série de condenações se uniu o relator especial da ONU sobre a independência dos juízes, Diego García-Sayán, que censurou as tentativas de Bukele de “desmantelar e enfraquecer a independência judicial”. Da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Santiago Cantón, chefe da delegação que cobriu El Salvador, criticou Bukele “por continuar a deteriorar a frágil democracia salvadorenha”.

A todos eles, o telegênico presidente centro-americano respondeu tuitando compulsivamente durante o fim de semana e até mesmo travando uma surreal troca de recriminações com o líder oposicionista da Venezuela, Julio Borges —braço direito de Juan Guaidó—, que escreveu: “Não há nem ditaduras de direita ou de esquerda: há ditadura. Não há ditaduras boas ou más: há ditadura”, escreveu Borges. Bukele, que paradoxalmente é assessorado por publicitários próximos de Guaidó, não gostou do comentário e respondeu: “Se vocês querem chegar ao poder para deixar o procurador-geral de Maduro e a Corte de Maduro, é melhor contar a verdade ao povo. Diga a eles que apoiar vocês é o mesmo que apoiar Maduro. Em El Salvador nos custou 30 anos liberar-nos do regime. Não vamos retroceder agora”.

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Segundo Bukele, seu Governo está imerso no que chama de “limpar a casa” e isso implicou a destituição, com o apoio do Congresso, de um grupo de juízes da Corte Suprema e do procurador-geral, disparando os alarmes sobre tentativas de concentração de poder. As destituições são a resposta mais recente a uma longa lista de queixas contra magistrados e deputados oposicionistas, valendo-se de sua maioria absoluta. Tudo indica que Bukele continuará passando o rolo compressor e, nos próximos dias, terão o mesmo destino os chefes da Procuradoria para a Defesa dos Direitos Humanos, da Procuradoria-Geral da República, do Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal de Contas.

Em fevereiro do ano passado, o presidente salvadorenho já tentara tomar a Assembleia Legislativa acompanhado do Exército, quando os deputados da oposição frearam um novo crédito destinado ao combate às gangues. Naquela ocasião, o presidente assumiu o Órgão Judiciário com a desarticulação da Sala Constitucional. O sistema salvadorenho possui mecanismos de controle e prestação de contas e, durante os dois anos em que Bukele está no poder, se tornou uma instituição que controlou efetivamente os excessos do presidente durante a pandemia e, por isso, era odiado pelo presidente.

O papel do novo procurador-geral no Governo de Bukele não demorou para emergir: Rodolfo Delgado questionou a continuidade do trabalho da Comissão contra a Impunidade, da OEA, em El Salvador e anunciou que revisará o acordo existente com esse órgão, uma das poucas organizações que até agora trabalham de forma livre e independente na era Bukele e que identificaram 12 casos de possível corrupção em seu Governo.

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