A vida sem plano B depois da saída da Ford no Brasil
Crise do setor automotivo é apenas uma parte do declínio geral da indústria brasileira, que vem perdendo posição em relação a outros países
Há 23 anos trabalhando na fábrica da Ford em Taubaté, no interior de São Paulo, Leandro Monteiro foi pego completamente de surpresa, quando uma avalanche de mensagens no Whatsapp começaram a chegar no dia 11 de janeiro. Todas comentavam a notícia que a montadora, que está no Brasil desde 1919, estava encerrando as atividades no país. No primeiro momento, o funcionário chegou a achar que fosse mentira. “Claro que havia rumores que alguma fábrica poderia fechar, porque a empresa não estava tendo o retorno financeiro desejável, houve muitos cortes nos últimos anos, mas nunca se falou em fechamento da empresa no Brasil”, explica Monteiro.
Viúvo e pai de três filhos, Monteiro, que começou na fábrica como office boy aos 14 anos e atualmente era operador de máquinas, diz ter se sentido traído. “A sensação é de ser tratado como lixo, eu e minha família demos o sangue pela Ford e a atitude dela é de uma fabriqueta. Da noite para o dia, nos fecharam a porta”, diz. O pai de Monteiro, José, trabalhou duas décadas na fábrica onde se aposentou. O irmão, Felipe, também estava há 17 anos na companhia. “Eu comecei 2021 tranquilo já que assinamos, no ano passado, um acordo que previa estabilidade no emprego até 31 de dezembro deste ano. E vínhamos sendo pacientes com as políticas de reestruturação da empresa”, explica.
Mais antiga do ramo automobilístico no país, a montadora vai concentrar a produção de veículos no Uruguai e, principalmente, na Argentina, e justificou a decisão citando a crise gerada pela pandemia da covid-19, a desvalorização do real e a reestruturação global da companhia. Assim como Monteiro, cerca de outros 5.000 trabalhadores da Ford irão perder os postos, sem falar no efeito cascata em fornecedores de uma cadeia altamente especializada. De acordo com estimativas do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), as demissões anunciadas pela Ford significam uma perda potencial de mais de 118.864 postos de trabalho, somando diretos e indiretos. Um contingente grande em um país que já conta com quase 14,3 milhões na fila de desemprego. Se considerados todos os chamados subutilizados, que inclui os desalentados e subempregados, está faltando trabalho para mais de 32,4 milhões de brasileiros.
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Clique aquiAlém da unidade de Taubaté, a atividade da Ford já está suspensa na unidade de Camaçari, na Bahia. Apenas a produção de algumas peças continuará por alguns meses para sustentar os estoques de vendas de reposição. A planta da Troller, em Horizonte, no Ceará, continuará operando até o quarto trimestre. A montadora manterá no Brasil apenas a sede administrativa da Ford para a América do Sul, na capital paulista, o Centro de Provas em Tatuí, em São Paulo, e o Centro de Desenvolvimento de Produto na Bahia.
No início do mês de abril, os trabalhadores da Ford aprovaram um plano de indenização proposto pela montadora. O acordo foi firmado após 25 reuniões de negociação entre a empresa e o Sindmetau (Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté e Região). Além das verbas rescisórias, o plano estabelece indenização de dois salários adicionais por ano trabalhado para os funcionários horistas. Já para os mensalistas, o valor é de um salário adicional por ano trabalhado. Entre outros pontos, o plano também prevê a abertura de um programa de qualificação, com objetivo de auxiliar os trabalhadores na reinserção no mercado. A Ford Taubaté conta com cerca de 800 trabalhadores diretos. “Todo mundo me pergunta qual o meu plano B. Mas a verdade é que no meio dessa pandemia e com três filhos para criar, ainda não tenho”, lamenta Monteiro.
Indústria automobilística em declínio
Além dos motivos particulares da Ford para decidir sair do país, a indústria automobilística brasileira vem atravessando anos de declínio. O setor automotivo chegou a ter, em outubro de 2013, 159.648 trabalhadores diretamente vinculados à indústria automotiva. Em dezembro do ano passado, foram registrados 120.538 trabalhadores diretos, o que corresponde a uma queda de 24,5% no período, segundo dados compilados pelo Dieese.
“A indústria automobilística no Brasil não é muito competitiva. Ela é muito cara. Enquanto a gente não fizer mudanças que a torne mais competitiva, esse processo irá continuar, outras sairão depois da Ford”, explica o economista Samuel Pessoa, pesquisador da FGV. Na avaliação do economista, é preciso urgentemente uma reforma tributária que reduza o custo de transação e de conformidade. “Quanto mais longa é uma cadeia produtiva, mais prejudicada ela fica diante dessa essa enorme complexidade tributária, e é o que ocorre com a automobilística”. Outro ponto importante, de acordo com Pessoa, é um redesenho da própria indústria. “No Brasil falta escala porque temos uma diversidade muito grande, são muitos modelos e marcas produzidos aqui. Fazemos do projeto ao produto final. Há pouca importação de autopeças, por exemplo. Apenas quando você se especializa em alguns produtos ou etapas do processo produtivo, é que consegue mais escala. ala”, explica.
As montadoras passam ainda por uma reestruturação mundial orientada devido às alterações regionais na demanda, a reorientação no padrão de consumo e também mudanças no paradigma tecnológico. “Em um contexto de reorganização produtiva, com maior foco em investimentos tecnológicos, a economia brasileira torna-se pouco atrativa para as montadoras. Portanto, a crise industrial brasileira é profunda e vai muito além da política macroeconômica”, segundo o professor Marco Rocha, da Unicamp.
Rafael Cagnin, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), concorda que parte da decisão da Ford é de uma mudança global. O setor está passando por alterações profundas, visando tecnologia verde, carros autônomos. É de se esperar que as empresas tenham que repensar estratégias, reorganizar cadeias de produção e priorizar países que estão em melhores condições de receber essas mudanças”, diz. “O setor automobilístico está no olho do furacão”, completa.
Para Cagnin, o Brasil já atravessa mais de seis anos de adversidades na economia, sem sinais claros dos objetivos para indústria, dando pouquíssima atenção à agenda de inovação. “Não há dúvidas que países e mercados com maior ambiente inovador e dinamismo saem na frente. Se o Brasil não fizer nada, não concretizar nada nesse momento que exige mudanças, vamos ficar para atrás”, diz.
Incentivos fiscais
As demissões no segmento automotivo são anteriores à pandemia, como o caso da própria planta da Ford em São Bernardo do Campo, ocorrido em março de 2019. Porém, o Dieese alerta que, para além das estratégias globais das montadoras, é necessário compreender que o Brasil possuía, até 2017, um programa de fomento ao segmento automotivo, denominado Inovar-Auto, cujos objetivos eram incentivar montadoras a investirem em pesquisa, engenharia e desenvolvimento, bem como fortalecer os fornecedores, através de uma política de conteúdo local, em que até 80% dos veículos fabricados pelas empresas habilitadas no programa deveriam realizar uma série de etapas da atividade produtiva no Brasil. Também foram adotados, por muitos anos, incentivos fiscais para a indústria automobilística, com créditos para financiar os investimentos no setor. A Ford está entre as quatro montadoras mais contempladas por recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em período recente. Entre 2002 e 2018, a Ford teve acesso a 5,5 bilhões de reais de crédito. Entre 2016 e 2019, o setor automotivo como um todo foi contemplado com incentivos tributários federais de mais de 15 bilhões de reais, além da política de desoneração da folha de pagamentos. “A indústria automobilística passou grande parte do tempo incentiva e hoje possui um problema estrutural”, explica o economista Alexandre Chia, do Insper.
Glauco Arbix, coordenador do Observatório da Inovação da Universidade de São Paulo (USP), afirma que ao fazer estudos sobre o tema dos incentivos, já alertava que havia um risco que a Ford, por exemplo, se aproveitasse desses benefícios fiscais em Camaçari, mas que quando eles terminassem ela saísse da Bahia. “O grande problema, quando ela saiu do Rio Grande do Sul, era se aproveitar desses subsídios e quando acabasse sair”, afirma.
A crise do setor automotivo é apenas uma parte do declínio geral da indústria brasileira, que vem perdendo posição em relação a outros países. De acordo com a United Nations Industrial Development Organization (Unido), em 2018, o Brasil ocupava a 9ª posição no valor adicionado da indústria de transformação (VAT) mundial e, em 2019, caiu para a 16ª posição. O fechamento de empresas no Brasil já vem ocorrendo, a exemplo da Sony e da planta da Mercedes-Benz em Iracemápolis, em São Paulo.
Segundo Arbix, o processo de desindustrialização que nações desenvolvidas, como França e Inglaterra, vivenciaram em 30 anos, o Brasil experimentou em meia década. Em termos de política pública para o setor não há praticamente nada e o Governo de Jair Bolsonaro ainda possui “um viés ideológico forte anti indústria”, “que fala que o Brasil não precisa inovar, não precisa de tecnologia”.
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