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Viagem ao fundo de um cérebro que não dorme

Dois estudos em camundongos mostram pela primeira vez como a falta de sono perturba o funcionamento do cérebro em nível molecular

N. D.
Imagem de um cérebro de camundongo.
Imagem de um cérebro de camundongo.Laboratorio Deiseroth
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Dois estudos pioneiros mergulham hoje no cérebro de animais para tentar responder a uma pergunta aparentemente simples, mas complicadíssima: Por que precisamos dormir?

Existem provas abundantes de que o sono é uma desconexão da realidade necessária para consolidar a memória, aprender e dar tempo ao corpo realizar suas funções de limpeza em nível molecular. A prova de que o sono é essencial é que sua falta está relacionada a doenças cardiovasculares, neurológicas e à obesidade. A isto se acrescentam as provas de que, quando o relógio circadiano que determina períodos de atividade e descanso em ciclos diários de cerca de 24 horas deixa de funcionar, a logística básica do corpo se rompe e uma multiplicidade de doenças aparece, incluindo o câncer. Embora o efeito reparador do sono tenha sido estudado em diferentes órgãos, até agora era quase impossível fazer o mesmo com o órgão dos órgãos, o cérebro, principalmente para entender o que acontece em nível molecular durante as horas de sono.

Os dois trabalhos, publicados na quinta-feira na Science, fornecem as primeiras respostas a essas perguntas. “Tentamos simular em camundongos o ritmo de vida que os humanos têm”, resume Charo Robles, pesquisadora espanhola da Universidade de Munique (Alemanha) e principal autora dos dois estudos. Sua equipe analisou a transcrição de proteínas e a fosforilação — processo bioquímico que transporta energia aonde é necessária — no cérebro durante ciclos de 24 horas. Um grupo de animais dormiu livremente — cerca de 12 por dia — e outros eram privados de sono em diferentes momentos do dia ou da noite — quatro horas no total. Os pesquisadores analisaram neurônios individuais e sequenciaram as moléculas produzidas a cada momento do dia na parte frontal do cérebro, que inclui o córtex cerebral e o hipocampo, epicentros da aprendizagem e da memória.

Os resultados revelam que o cérebro segue ritmos de atividade e repouso muito marcados, nos quais se destacam dois momentos culminantes: o amanhecer e o anoitecer, que coincidem com o início do sono e da vigília nos camundongos, respectivamente, porque são animais noturnos. O trabalho também demonstra que esses ciclos são completamente perturbados se houver falta de horas de sono. Uma das moléculas estudadas é o RNA mensageiro, encarregado de viajar para onde é necessário iniciar o processo de produção de proteínas, por exemplo, neurotransmissores que permitem intensificar a atividade cerebral ou deprimi-la quando é necessário que o cérebro descanse.

A bióloga molecular Charo Robles, no centro, ao lado dos membros de sua equipe na Universidade de Munique (Alemanha).
A bióloga molecular Charo Robles, no centro, ao lado dos membros de sua equipe na Universidade de Munique (Alemanha).C. R.

“O processo de atividade e inatividade é marcado em parte pelo relógio interno que todos possuímos e que determina ritmos circadianos a cada 24 horas, aproximadamente”, explica Robles. “O que vemos é que o cérebro parece se antecipar à atividade que terá no dia seguinte e envia as moléculas de RNA mensageiro para as sinapses, as conexões entre os neurônios, responsáveis pelo pensamento, memória e outras funções cognitivas. Uma vez lá, os RNAs iniciam o processo de produção de proteínas com esses picos de atividade concentrados ao amanhecer e ao anoitecer”, detalha. Os camundongos que não dormem o suficiente possuem todos os RNAs em seu lugar, mas por razões desconhecidas as moléculas não iniciam a produção de proteínas, necessárias para gerar consciência e pensamento durante o dia ou relaxar os neurônios durante o sono. O segundo trabalho, cuja autora principal também é espanhola, a pesquisadora Sara Noya, da Universidade de Zurique (Suíça), ressalta que a falta de sono paralisa a fosforilação que permite levar a energia de onde está para onde é necessária. Os camundongos que não dormem perdem 98% de toda essa capacidade, um apagão cerebral.

“O cérebro de um camundongo e o de um humano são muito diferentes, mas acreditamos que estes resultados confirmam a hipótese de que o sono é essencial para restabelecer a estabilidade neuronal depois de um dia de atividade e na preparação para o próximo”, explica Robles.

Entender o muito complexo sono do cérebro em nível molecular — um dos trabalhos analisou cerca de 8.000 proteínas — é o primeiro passo para um possível medicamento que permita desfazer os efeitos negativos da falta de sono no cérebro, admite Robles, “embora seja algo ainda distante”, diz. Seu próximo objetivo é estender a cartografia molecular para mais áreas do cérebro dos camundongos. “Ainda há muitas perguntas a responder, por exemplo, o córtex cerebral é muito ativo durante o dia e menos à noite, mas há outras áreas do cérebro que só ficam excitadas durante o sono”, ressalta.

“Estes estudos são muito importantes para saber que tais fenômenos ocorrem nos camundongos, é algo que se desconhecia”, diz María Llorens, pesquisadora do Centro de Biologia Molecular Severo Ochoa, em Madri. Agora, o grande desafio é “dispor de técnicas não invasivas para avaliar se tais mudanças ocorrem nos seres humanos”, algo muito complicado por enquanto, mas que “não tira absolutamente nada do mérito da descoberta”, diz. O laboratório de Llorens descobriu neste ano que o cérebro humano continua produzindo novos neurônios durante toda a vida, mesmo na velhice. Quem sabe se também essa capacidade regenerativa depende intimamente das horas que dormimos todos os dias.

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