‘Fleabag’ e o que ainda há de original a se dizer sobre o amor
Phoebe Waller-Bridge se arrisca a nos dizer a verdade sem resolução cômica ou clichês de superação, que ecoa mesmo em quem não teria coragem de admiti-la em voz alta
Em um dos poucos esquetes memoráveis do último Emmy, Ben Stiller perguntou à audiência o que um comediante da velha guarda pensaria sobre o naipe das séries indicadas, começando por Fleabag— a “comédia sobre uma ninfomaníaca”. Parece improvável, é claro, que um homem possa formar uma opinião incorreta a respeito da sexualidade de uma mulher. No entanto, talvez esta seja uma dessas raras ocasiões. Fleabag fala sobre sexo, sim, mas também sobre humor e franqueza, e sobre como tudo isso pode ser usado para evitar o incômodo de uma intimidade; ou pra alcançá-la, quando o íntimo se torna irresistível. É uma história de amor.
Fleabag, xingamento usado pra se referir tanto à série quanto à sua protagonista, abre seu primeiro episódio com uma piada vulgar; o tipo de piada que não se poderia repetir em um jornal, mesmo após muita insistência com o editor. Ao longo da temporada, lugares-comuns da comédia, como a falsa espontaneidade do sexo anal, ou o constrangimento de um homem tímido ao ser confrontado com um pênis de borracha, se convertem em reflexões surpreendentemente profundas sobre a sexualidade feminina. A mensagem da série é clara: estamos diante de uma mulher que diz o que todas pensamos e não temos coragem de dizer.
De fato, a identificação do público com a protagonista é tão grande que uma repórter perguntou à sua criadora e intérprete, Phoebe Waller-Bridge, como ela se sente sobre ser considerada “a voz da mulher moderna”— e recebeu, em resposta, um riso. Com um certo sacrifício da concisão, poderia-se responder, também, que embora a série nos convide a acompanhar uma protagonista carismática e sedutora em seus momentos mais íntimos, a relação do espectador com a personagem não é uma de intimidade. Pelo menos, não a princípio.
Em uma das cenas mais marcantes da primeira temporada, Fleabag transa com um homem de dentes enormes, como os de um rato. Não há nudez. O foco é o monólogo interno da protagonista, fazendo pouco do parceiro e dando a entender a nós, seus cúmplices, que não está impressionada. Até aí, nada de novo; não é exatamente vanguarda retratar uma mulher insatisfeita com um homem. Mas quando Fleabag concorda, sem entusiasmo, sobre a transa ter sido incrível, o homem hesita, observando seu rosto, e então diz: “Você não passa a vida com dentes como estes sem saber quando alguém está fingindo”.
Ela está mesmo. A sinceridade de Fleabag é uma performance. Sua franqueza esconde o que a envergonha: a culpa, o luto e a solidão. Se o humor de Waller-Bridge alivia a tensão que sua personagem carrega, ele introduz também um incômodo; quanto mais uma cena nos faz rir, mais ela nos deixa vulneráveis, e cada piada é imediatamente seguida de um soco no estômago.
Assim, no correr dos episódios, a fachada alegre de Fleabag entra em rota de colisão com a realidade, até que a temporada chega, enfim, a seu clímax, com a protagonista sofrendo a rejeição brutal de toda sua família—e a revelação do segredo que vinha escondendo. Sentada em seu café falido, cercada de imagens de porquinhos da índia e abandonada por seu pai e sua irmã, ela confessa que só o que lhe resta é seu corpo, e que nada poderia ser pior do que alguém que não o queira.
A essa altura, talvez o leitor tenda a concordar com Ben Stiller, e dizer que Fleabag é mesmo uma comédia sobre uma ninfomaníaca. Por certo, o dano causado pelo sexo está ali, e em peso; mas essa não é a questão. Não há um tom moralista que demonize a transa casual, ou que diga que o entusiasmo feminino pelo sexo é necessariamente uma expressão de angústia. Tampouco Fleabag entra no território da autoajuda, idealizando o sexo sob a aura dourada do empoderamento e do sagrado feminino. O apelo da série é justamente o de evitar o tom normativo, que diz o que o sexo deve ser e o que não deve ser. Focamos no que ele é.
'Fleabag' se arrisca a nos dizer a verdade vergonhosa, sem resolução cômica ou clichês de superação, e que ecoa mesmo em quem não teria coragem de admiti-la em voz alta
Sexo é, às vezes, a coisa menos íntima que se pode viver. Sexo, às vezes, serve de paliativo, nos distraindo dos nossos demônios, e nisso se confunde com o luto, a culpa, e o medo. Se outras séries tratam da sexualidade feminina num tom superficial, recorrendo à piada fácil da transa insatisfatória e do homem hétero incompetente e broxa, Fleabag navega em águas mais fundas, com Waller-Bridge se arriscando a nos dizer a verdade. É uma verdade vergonhosa, sem resolução cômica ou clichês de superação, e que ecoa mesmo em quem não teria coragem de admitir, em voz alta, que a reconhece dentro de si.
Não é o humor cáustico nem a exposição sexual que nos tornam cúmplices da protagonista e revelam o que está escondido, mas sim a rejeição devastadora que a personagem sofre ao fim da primeira temporada; e assistir ao desenrolar dessa rejeição é uma experiência muito mais íntima do que qualquer piada sobre vibradores poderia ser. Terminando aí, Fleabag já seria uma obra-prima—só que essa visão cínica é apenas metade da história. Por isso, a série retorna, em sua segunda e última temporada, com um tom de esperança, disposta a mostrar que o mesmo jogo de sedução que serve como mecanismo de distanciamento serve, também, para nos aproximar do outro.
Se a primeira temporada da série lida com o dano que o sexo pode causar, a segunda aborda o trabalho extenuante que é o amor, com toda a intimidade sexual e emocional que ele pressupõe, e o quão aterrorizante é amar—especialmente para alguém que se odeia, e a quem uma grande história de amor soa como a pior das ameaças. Por isso, quando um padre —o Padre (sem mais spoilers)— reconhece que não é fácil pensar em algo original a se dizer sobre o amor, a frase parece quase irônica, já que Fleabag foi celebrada pela crítica como a série mais original do ano. De fato, talvez o assunto seja inesgotável. Existem coisas infinitas a se dizer sobre o amor, desde que se tenha a coragem de dizê-las.
DJ Laurinha Lero lança episódios novos de seu podcast Respondendo em voz alta às sextas, mas nem toda sexta, já que em algumas se ocupa publicando textos sérios sob nome artístico.
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