_
_
_
_
_
CONTÉM SPOILERS!
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

‘Fleabag’ e o que ainda há de original a se dizer sobre o amor

Phoebe Waller-Bridge se arrisca a nos dizer a verdade sem resolução cômica ou clichês de superação, que ecoa mesmo em quem não teria coragem de admiti-la em voz alta

Em um dos poucos esquetes memoráveis do último Emmy, Ben Stiller perguntou à audiência o que um comediante da velha guarda pensaria sobre o naipe das séries indicadas, começando por Fleabag— a “comédia sobre uma ninfomaníaca”. Parece improvável, é claro, que um homem possa formar uma opinião incorreta a respeito da sexualidade de uma mulher. No entanto, talvez esta seja uma dessas raras ocasiões. Fleabag fala sobre sexo, sim, mas também sobre humor e franqueza, e sobre como tudo isso pode ser usado para evitar o incômodo de uma intimidade; ou pra alcançá-la, quando o íntimo se torna irresistível. É uma história de amor.

Fleabag, xingamento usado pra se referir tanto à série quanto à sua protagonista, abre seu primeiro episódio com uma piada vulgar; o tipo de piada que não se poderia repetir em um jornal, mesmo após muita insistência com o editor. Ao longo da temporada, lugares-comuns da comédia, como a falsa espontaneidade do sexo anal, ou o constrangimento de um homem tímido ao ser confrontado com um pênis de borracha, se convertem em reflexões surpreendentemente profundas sobre a sexualidade feminina. A mensagem da série é clara: estamos diante de uma mulher que diz o que todas pensamos e não temos coragem de dizer.

Mais informações
Nas novas séries, já não se trata mais apenas de se concentrar na mulher
Chris Kraus: “O homem, sem dúvida, também virou um objeto”

De fato, a identificação do público com a protagonista é tão grande que uma repórter perguntou à sua criadora e intérprete, Phoebe Waller-Bridge, como ela se sente sobre ser considerada “a voz da mulher moderna”— e recebeu, em resposta, um riso. Com um certo sacrifício da concisão, poderia-se responder, também, que embora a série nos convide a acompanhar uma protagonista carismática e sedutora em seus momentos mais íntimos, a relação do espectador com a personagem não é uma de intimidade. Pelo menos, não a princípio.

Em uma das cenas mais marcantes da primeira temporada, Fleabag transa com um homem de dentes enormes, como os de um rato. Não há nudez. O foco é o monólogo interno da protagonista, fazendo pouco do parceiro e dando a entender a nós, seus cúmplices, que não está impressionada. Até aí, nada de novo; não é exatamente vanguarda retratar uma mulher insatisfeita com um homem. Mas quando Fleabag concorda, sem entusiasmo, sobre a transa ter sido incrível, o homem hesita, observando seu rosto, e então diz: “Você não passa a vida com dentes como estes sem saber quando alguém está fingindo”.

Ela está mesmo. A sinceridade de Fleabag é uma performance. Sua franqueza esconde o que a envergonha: a culpa, o luto e a solidão. Se o humor de Waller-Bridge alivia a tensão que sua personagem carrega, ele introduz também um incômodo; quanto mais uma cena nos faz rir, mais ela nos deixa vulneráveis, e cada piada é imediatamente seguida de um soco no estômago.

Assim, no correr dos episódios, a fachada alegre de Fleabag entra em rota de colisão com a realidade, até que a temporada chega, enfim, a seu clímax, com a protagonista sofrendo a rejeição brutal de toda sua família—e a revelação do segredo que vinha escondendo. Sentada em seu café falido, cercada de imagens de porquinhos da índia e abandonada por seu pai e sua irmã, ela confessa que só o que lhe resta é seu corpo, e que nada poderia ser pior do que alguém que não o queira.

A essa altura, talvez o leitor tenda a concordar com Ben Stiller, e dizer que Fleabag é mesmo uma comédia sobre uma ninfomaníaca. Por certo, o dano causado pelo sexo está ali, e em peso; mas essa não é a questão. Não há um tom moralista que demonize a transa casual, ou que diga que o entusiasmo feminino pelo sexo é necessariamente uma expressão de angústia. Tampouco Fleabag entra no território da autoajuda, idealizando o sexo sob a aura dourada do empoderamento e do sagrado feminino. O apelo da série é justamente o de evitar o tom normativo, que diz o que o sexo deve ser e o que não deve ser. Focamos no que ele é.

'Fleabag' se arrisca a nos dizer a verdade vergonhosa, sem resolução cômica ou clichês de superação, e que ecoa mesmo em quem não teria coragem de admiti-la em voz alta

Sexo é, às vezes, a coisa menos íntima que se pode viver. Sexo, às vezes, serve de paliativo, nos distraindo dos nossos demônios, e nisso se confunde com o luto, a culpa, e o medo. Se outras séries tratam da sexualidade feminina num tom superficial, recorrendo à piada fácil da transa insatisfatória e do homem hétero incompetente e broxa, Fleabag navega em águas mais fundas, com Waller-Bridge se arriscando a nos dizer a verdade. É uma verdade vergonhosa, sem resolução cômica ou clichês de superação, e que ecoa mesmo em quem não teria coragem de admitir, em voz alta, que a reconhece dentro de si.

Não é o humor cáustico nem a exposição sexual que nos tornam cúmplices da protagonista e revelam o que está escondido, mas sim a rejeição devastadora que a personagem sofre ao fim da primeira temporada; e assistir ao desenrolar dessa rejeição é uma experiência muito mais íntima do que qualquer piada sobre vibradores poderia ser. Terminando aí, Fleabag já seria uma obra-prima—só que essa visão cínica é apenas metade da história. Por isso, a série retorna, em sua segunda e última temporada, com um tom de esperança, disposta a mostrar que o mesmo jogo de sedução que serve como mecanismo de distanciamento serve, também, para nos aproximar do outro.

Se a primeira temporada da série lida com o dano que o sexo pode causar, a segunda aborda o trabalho extenuante que é o amor, com toda a intimidade sexual e emocional que ele pressupõe, e o quão aterrorizante é amar—especialmente para alguém que se odeia, e a quem uma grande história de amor soa como a pior das ameaças. Por isso, quando um padre —o Padre (sem mais spoilers)— reconhece que não é fácil pensar em algo original a se dizer sobre o amor, a frase parece quase irônica, já que Fleabag foi celebrada pela crítica como a série mais original do ano. De fato, talvez o assunto seja inesgotável. Existem coisas infinitas a se dizer sobre o amor, desde que se tenha a coragem de dizê-las.

DJ Laurinha Lero lança episódios novos de seu podcast Respondendo em voz alta às sextas, mas nem toda sexta, já que em algumas se ocupa publicando textos sérios sob nome artístico.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_