_
_
_
_
_

Governo flerta com congelar o salário mínimo, recua e expõe o difícil xadrez do teto de gastos

Equipe econômica se rende ao papel de 'patrimônio' que o piso nacional desempenha no Brasil e revela mais uma vez a dificuldade para fechar a conta com gastos públicos congelados sem que haja risco de um aumento na desigualdade

Ministro da Economia, Paulo Guedes, em evento no Rio de Janeiro.
Ministro da Economia, Paulo Guedes, em evento no Rio de Janeiro. Silvia Izquierdo (AP)
Mais informações
14 horas numa fila por um emprego: “As contas e a barriga não esperam”
O casal que se afundou em dívidas para tentar aumentar a renda com a Uber

Com as contas públicas no vermelho há cinco anos e um rombo de 139 bilhões estimado para 2019, a equipe econômica do Governo Jair Bolsonaro apontou, no início desta semana, a possibilidade de propor um remédio amargo à população: retirar da Constituição a obrigatoriedade de que o salário mínimo seja reajustado pela inflação. Em outras palavras, a polêmica ideia —da qual o Governo acabou recuando nesta quinta—era congelar o valor do piso nacional durante os períodos de aperto fiscal para diminuir as despesas obrigatórias e, assim, não furar o teto de gastos, que, desde 2016, limita o aumento de custos e não permite que eles subam acima da inflação. A intenção inicial era de que a medida fosse incorporada à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438, que altera regras das despesas públicas e já tramita no Congresso. A mudança, segundo especialistas ouvidos pelo EL PAÍS, poderia diminuir o poder de consumo das classes mais baixas e ampliar a desigualdade no Brasil.

Pelos cálculos da equipe econômica, a cada um real de elevação no salário mínimo, as despesas do Governo sobem cerca de 300 milhões de reais, sendo este um dos principais fatores do avanço dos gastos primários. Com o congelamento, poderiam ser economizados até 35 bilhões em um ano. Segundo um estudo da Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério de Economia, reajustes vinculados à inflação e ao salário mínimo representam 46% do gasto primário. O aumento é elevado porque uma série de benefícios sociais, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o abono salarial (valor extra pago ao trabalhador que recebe até dois salários mínimos) e as aposentadorias são indexadas ao pagamento mínimo e tem um aumento proporcional. Por isso mesmo, neste ano, o Governo já havia determinado que o valor do salário de 2020 deverá apenas repor as perdas inflacionárias, e não mais considerar o crescimento da economia do país, como vinha acontecendo desde 2011. A equipe do ministro Paulo Guedes estima que o reajuste do próximo ano levará o salário de 998 reais para 1.039 reais.

Entre 1997 e 2017, o salário mínimo teve um avanço real de 166,7%. E esta variação é apontada por pesquisadores como um dos fatores responsáveis pela queda da pobreza no país nas últimas décadas e visto como de extrema importância para a melhoria da qualidade de vida dos brasileiros. "Vários estudiosos mostram que a política de valorização do salário foi um importante mecanismo para reduzir a desigualdade. Se a remuneração tivesse seguido nesses anos todos apenas pela inflação, o salário seria hoje de 573 reais e não de 998 reais", explica o economista Thales Nogueira, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Os 425 reais a mais trouxeram consequências altas nas contas públicas, mas, ao mesmo tempo, proporcionaram uma transferência de renda grande aos mais pobres e um poder de compra que, segundo Nogueira, são efeitos que não podem ser desprezados em momentos de crise econômica, como o que atravessamos nestes últimos anos.

"O Governo precisa se perguntar o quanto valeria essa economia fiscal comparada as perdas distributivas de geração de renda. Mudando essa regra, haverá distorções econômicas, diminuindo ainda mais a renda que já está em queda nas classes mais pobres desde 2014. Vínhamos apresentando uma queda nos números de desigualdade e, após a crise, ela começa a aumentar. É preciso fazer escolhas", explica Nogueira.

Um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas revela que depois da recessão (2015-2016), os brasileiros mais pobres amargam uma queda de mais de 20% da renda de trabalho acumulada, enquanto o estrato mais rico somou um aumento de 3,3% de renda.

Na avaliação de Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), retirar a garantia de reajustar o salário mínimo com a inflação significa remover uma proteção aos mais pobres. "Por um problema fiscal, estão querendo um arrocho salarial que afeta o lado mais fraco. Claro que o problema fiscal existe, mas, em grande medida, porque a economia está travada. É necessário destravá-la e não retirar, ainda mais, o poder de consumo da população", afirma.

Para Nogueira, preservar ou não o aumento nominal do salário não deveria estar na pauta. "Deveria ser regra de ouro. Em um momento de crise, pelo menos a inflação tem que ser mantida para garantir o poder de compra. A posteriori talvez seja necessário pensar em uma nova fórmula, como vincular o crescimento [do salário mínimo] ao PIB per capita que está mais vinculado à produtividade", diz. De acordo com o pesquisador, a medida afeta tanto trabalhadores registrados como os informais, que hoje já representam cerca de 40% do mercado, já que o mínimo serve de base também para as ofertas dos trabalhadores que não possuem carteira assinada.

Ao reduzir o salário, o Governo também pode colher efeitos na arrecadação. "Hoje, a cada real a menos do mínimo o Governo deixa de receber 54 centavos em tributo. Então você pode até economizar de um lado, mas há perdas do outro também", diz.

O pesquisador da PUC ressalta ainda que é emblemático que, na mesma semana em que se debateu uma possível mudança na regra de reajuste do salário, também haja uma discussão sobre um novo Refis para os ruralistas. "Essa renegociação das dívidas [dos produtores rurais] geraria um custo de 11,7 bilhões de reais", explica.

Vilma Pinto, pesquisadora da área de Economia Aplicada do FGV IBRE, concorda que a proposta aventada pelo Governo visa puramente  resolver a delicada situação fiscal do país e exclui as consequências que podem ser geradas no mercado de trabalho. "Primeiro, o Governo tentou desvincular o salário da reforma da Previdência e não conseguiu, por isso agora tenta novamente. É uma medida emergencial, que não acredito que seja viável sem levar os impactos no mercado de trabalho com essa perda real dos rendimentos", diz.

Medida deve sofrer resistência no Congresso

Na avaliação de Pinto, caso o Governo não tivesse recuado da proposta seria muito pouco provável que o Congresso a aceitasse, por se tratar de um tema delicado e que afeta grande parte da população. "Você consegue justificar uma Reforma da Previdência por uma questão de bônus demográfico, da população se aposentar muito cedo. Justifica a reforma Tributária por ter um sistema muito ineficiente e complexo. Mas é difícil justificar o congelamento do salário só porque as contas estão no vermelho. Não acredito que seja suficiente", completa.

O próprio deputado federal Felipe Rigioni (PSB- ES), relator na comissão especial da Câmara que discutirá a PEC 438 já vinha dando mostras de seu desconforto. Ele ressaltou durante a semana que a proposta de congelamento de salários não partiu dele e que tampouco contava com seu apoio. Na quarta-feira, usou seu Twitter para afirmar que o congelamento era "algo inviável". Nesta quinta, Esteves Colnago, secretário especial adjunto de Fazenda do Ministério da Economia, afirmou que o Governo não pretende adotar qualquer medida neste sentido.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_