“Que Ricardo Coração de Leão tenha se deitado com o rei da França não significa que fosse gay”
O historiador britânico Thomas Asbridge, consultor ignorado de 'Cruzada’, de Ridley Scott, publica uma emocionante e esclarecedora nova síntese das cruzadas
Lá estão todos os episódios famosos da história das cruzadas, de 1099 a 1291, a sanguinária conquista de Jerusalém na primeira, a Batalha dos Cornos de Hattin, onde os muçulmanos destroçaram o exército cristão e se perdeu a Vera Cruz, a tomada de Acre na Terceira Cruzada, o audaz assalto anfíbio de Luís IX da França em Damieta, a retirada dos templários da última fortaleza de Château Pèlerin... E todas as grandes figuras: Godofredo de Bouillon, de quem se dizia que havia sido parido por um cisne, embora parecesse mais uma ave de rapina; o devastado Rei Leproso (que nunca usou máscara) e sua irmã Sibila; o violento (e tão ultrajado pelo cinema) Reinaldo de Châtillon; Nur al Din, Saladino e, claro, Ricardo Coração de Leão.
Em The Crusades – The War for the Holy Land (“As cruzadas – a guerra pela terra santa”), do historiador britânico Thomas Asbridge, especialista em Idade Média e assessor no filme Cruzada (2005), de Ridley Scott, em que diz que seus critérios não foram levados em conta. No livro aparece a relação completa de fatos e personagens, mas apresentados de uma maneira muito mais equilibrada do que o habitual, porque contextualizados com fontes de ambos os lados, o cristão e o muçulmano. Também encontramos coisas pouco conhecidas ou ignoradas: a prática do canibalismo pelos famintos cruzados de Raimundo de Toulouse, que, dizem as fontes, comiam as nádegas assadas dos sarracenos mortos; o último ataque dos templários, literalmente pegando fogo, surgindo do castelo do Vau de Jacó devastado pelo fogo, e a captura por Ricardo de um navio de abastecimento muçulmano que levava sete emires, 700 soldados de elite e 200 serpentes extremamente venenosas, que eles planejavam soltar no meio do exército cristão.
Nas intensas e apaixonantes páginas de Asbridge vemos como um balestreiro enfiar uma seta na virilha de um soldado muçulmano que está ultrajando uma cruz, urinando sobre ela, nos muros de Acre; Godofredo de Lusignan liquidando 10 muçulmanos com sua tocha de guerra; os francos enchendo de cadáveres o fosso da cidade enquanto os inimigos tratam de tirá-los. Aprendemos que a catapulta maior dos cruzados em Acre se chamava Mau Voisin, e uma de suas pedras tinha esmagado 12 defensores da cidade de uma só vez; que Ricardo adorava os pêssegos e as peras, e que quando você ataca uma muralha sempre é preciso olhar para trás e conferir se os outros o seguiram, para não ficar isolado lá em cima, como aconteceu com o valoroso Aubery Clements, marechal da França, despedaçado pelos alfanjes ao ficar sozinho na Torre Maldita (as fontes francas elogiam sua coragem, enquanto testemunhas muçulmanas afirmam que suplicou lastimosamente por sua vida).
Foram as cruzadas mais brutais e sangrentas que outros enfrentamentos da Idade Média? Em visita a Barcelona, Asbridge, que não leva armadura nem peitilho e sim uma camisa azul, responde: “Obviamente as cruzadas não foram um exercício pacífico, mas em geral se respeitaram as convenções bélicas da época. Talvez, se houve algo especial, foi a prática da decapitação post mortem, que não era habitual nas guerras no Ocidente”. Das duras descrições de seu livro (o cavalheiro cujo nariz fica pendurando sobre os lábios após ser cortado por uma cimitarra) recorda que o combate medieval “era brutal, matava-se cara a cara, com armas brancas, não havia distância, e sim um contato muito íntimo entre adversários. Era uma realidade muito violenta. Apenas refleti o que era aquilo”. Entretanto, matiza que não se deve ver a época das cruzadas como um tempo de “guerra total”, com incessantes batalha e campanhas, e recorda que houve uma realidade pragmática e política e interesses comerciais que fizeram que se criasse um entorno fronteiriço onde os europeus interagiram com a cultura oriental e a assimilaram.
O historiador destaca a capacidade de sobrevivência dos cruzados em um ambiente tão hostil e a surpresa que foi o sucesso da Primeira Cruzada. Salienta que ele – como a maioria – é fascinado sobretudo pela Terceira, com seus grandes personagens e excelentes fontes que permitem analisá-la de diferentes perspectivas. Sobre Ricardo Coração de Leão, afirma que apresenta múltiplos traços de caráter, podia ser brutal, mas também magnânimo e generoso. Foi um bom comandante militar, mas ao mesmo tempo (como Saladino) um habilíssimo negociador. Muito valente, em seu papel de rei-soldado, lançando-se impetuosamente à frente de suas tropas e ficando em perigo (sofreu um ferimento de balestra no flanco em uma refrega perto do mar Morto). Não recorda Alexandre Magno? “Não tinha seu gênio militar, aprendia com a mão na massa, algumas de suas vitórias, como a de Arsuf, não foram planejadas, e sim um acidente, ao ter parte de seu exército impetuosamente arrancado. Não, não era um Alexandre, nem um Aquiles. Não é um dos mais hábeis e carismáticos comandantes da história”. Ao contrário de Alexandre, a quem seus homens, amotinando-se, fizeram abandonar sua marcha de conquistas, foi Ricardo quem fez os seus retrocederem, duas vezes, quando partiam para Jerusalém, para grande descontentamento destes. Por outro lado, os dois podiam perder as estribeiras, como provou Ricardo ao executar a sangue frio a guarnição de Acre. Asbridge duvida de que fosse homossexual, embora tenha estado na moda fazer do Coração de Leão um ícone gay. “Sugeriu-se isso, [mas] eu não vejo nas fontes da época. Não podemos saber ao certo, mas ele teve um filho ilegítimo, e isso de que compartilhavam leito ele e o rei da França, Felipe Augusto, não tem o mesmo significado que para nós; é uma convenção para explicar uma aliança política, e não significa necessariamente um encontro sexual. Não podemos interpretar o que se fazia 800 anos atrás com nosso critério de hoje.”
Asbridge dedicou seis anos a escrever seu livro, cuidando especialmente de não ser prisioneiro de um enfoque único e de não cair nos estereótipos. “É muito difícil se distanciar na história das cruzadas de tudo o que damos por sabido, mas as fontes diferentes inclusive dão vencedores diferentes em algumas batalhas; é fundamental combinar perspectivas. Claro que em casos como o de Hattin, o que para os cristãos é uma espantosa catástrofe para os muçulmanos é uma maravilhosa vitória; sempre há duas verdades, duas realidades”. A propósito dessa batalha, que provocou um imediato estado de choque na cristandade e foi comparada com o 11 de Setembro, Asbridge adverte que é um erro (e “interpretar mal e manipular a história”) procurar uma continuidade de enfrentamento entre o mundo ocidental e o muçulmano desde as cruzadas. “A ressonância é artificial, na verdade não existe nenhum laço ininterrupto de ódio e discórdia que una o conflito medieval pelo controle da Terra Santa com as lutas contemporâneas do Oriente Médio.”
Asbridge opina que o fracasso final das cruzadas e a perda da Terra Santa tiveram a ver com a impossibilidade de represar o ímpeto irracional que ela inspirava nos cruzados: a promessa de salvação individual, a garantia de que culminar uma peregrinação armada podia redimir os pecados e dar acesso à salvação. Esse desejo passional e piedoso, junto com os interesses pessoais dos diferentes chefes das cruzadas, impedia que fossem conduzidas de uma maneira lógica e coerente, garantindo a conquista e defesa da Terra Santa.
“O filme de Ridley Scott é uma caricatura da Idade Média”
De seu trabalho como consultor de Cruzada (2005), Asbridge diz que foi "uma experiência muito penosa". Em seis meses de assessoria protagonizou muitas discussões, "mas em última instância não tive nem voz nem voto, não levaram meus critérios em conta, e o resultado foi um filme que não passa de uma caricatura da Idade Média". "Era muito estranho", acrescenta, "não queriam falar da realidade das cruzadas, e sim apresentar a Idade Média como um espelho do presente".
Recorda que viu finalmente o filme em uma sessão privada numa sala do Soho, apenas com um assessor de imprensa sentado ao seu lado. “Foi doloroso”. Procuraram-no para que ajudasse a promover o filme, e se negou. “Então o próprio Ridley Scott me ligou. Disse-me que o que ele queria era explorar a história, e que não era preciso ser realista.”
O que ele acha pior? Que os muçulmanos levem o estandarte da meia lua, que só passou a ser empregado em bandeiras militares no século XIV? Que se dê a ordem de "fogo!" aos arqueiros e catapultas? A insígnia do reino de Castela e Leão, que só se juntariam em 1230? A otimista afirmação do hospitalário de que lutou dois dias com uma flecha nos testículos? Reinaldo de Châtillon? "O ator, Brendan Gleeson, é brilhante, mas Reinaldo... Era violento, sim, embora você não possa mostrá-lo como um vilão descerebrado, que mata sem motivo – esse é um dos maiores erros do filme, uma caricatura". O personagem de Balian de Ibelin [Orlando Bloom] era, por sua vez, muito mais turvo, pois escapou vergonhosamente de Hattin e fez muitas intrigas (além do que, era casado e tinha dois filhos durante o assédio de Jerusalém). "Pegaram praticamente só o nome, era um sujeito que torturava pessoalmente muçulmanos prisioneiros e escravos. Toda a história de sua chegada à Terra Santa é completamente inventada."
Em todo caso, Cruzada criou muita iconografia sobre o período. "Sempre me surpreendeu o poder das imagens, eu mesmo utilizo algumas cenas do filme em minhas aulas sobre Saladino. Mas é preciso recordar que a sequência em que o sultão entra em Jerusalém e põe uma cruz de pé é uma completa manipulação. Ridley Scott me disse: 'Como você pode não apoiar um filme como esse, com mensagem de respeito entre as religiões?'. Mas, na verdade, Saladino fez foi derrubar a cruz da Cúpula da Rocha, que é exatamente o contrário." O trabalho pelo menos serviu para que o historiador entrasse em outro projeto, "muito mais sério, nas antípodas do filme, uma série da HBO no estilo Irmãos de Guerra, mas nas cruzadas". Trabalhou dois anos e meio nisso; a série acabou não indo adiante por falta de orçamento e porque o diretor foi chamado para um filme da Disney.
Seu livro sobre as cruzadas é uma espécie de revanche de Cruzada? "Não, não", ri o historiador. "Reconheço que fazer um filme é tremendamente difícil e não se pode ser absolutamente rigoroso, e que é preciso chegar a compromissos, mas...".
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