Mineração, ouro e fotografia
A obra de Sebastião Salgado nos alerta e denuncia a deterioração do planeta pela exploração dos recursos naturais e as consequências do sistema capitalista nas relações sociais
Esse par de olhos azuis que me observa num misto de calmaria e voracidade é, provavelmente, a maior testemunha das transformações mais significativas que a humanidade atravessou no século XX. Como será que este jovem senhor de 75 anos lida internamente com toda carga emocional e espiritual de seu extenso processo de documentação sobre os impactos do sistema capitalista na vida de milhares de pessoas? Me pergunto enquanto percorro, deslumbrado, o salão do quinto andar da unidade Av. Paulista do SESC São Paulo, um dos principais redutos culturais do país e que inaugura hoje, quarta-feira (17) às 19h, à exposição Gold - Mina de Serra Pelada que reúne dezenas de fotografias de Sebastião Salgado tiradas na maior mina de ouro da história brasileira nos anos 1980.
Me lembro como se fosse ontem quando, 15 anos atrás, minha mãe emocionada abria o livro Trabalhadores, com fotografias impressionantes de homens em seus ambientes de trabalho. A colossal publicação permanece no posto nobre da mesa de centro da casa dos meus pais até hoje. Na época, no auge dos meus 18 anos, enquanto folheava aquelas paginas repletas de fotografias em preto e branco, não poderia imaginar que me tornaria também um fotógrafo, altamente influenciado pela linguagem documental consolidada por Salgado. Assim como a mim, Sebastião incentivou, ainda que sem intenção, a milhares de fotógrafos espalhados pelo planeta a se lançarem ao mundo para documentar a realidade munidos de uma câmera e uma lente grande angular. Se, por um lado, sua obra é de uma magnitude única na história da fotografia mundial e suas imagens tenham rodado o mundo em inúmeras exposições, por outro sua simplicidade é a tônica de nossos últimos encontros: “Venha tomar um cafezinho”, me convidava para uma pausa na fronteira entre Brasil e Venezuela em dezembro do ano passado. Sua tranquilidade nos ensina lições poderosas sobre o ofício: “Temos que ir para o mundo fotografar”, me conta. Apenas ir.
O sistema de crenças indígenas estabelece que nenhum metal pode ser subtraído do solo, pois eles são os responsáveis pela força vital da mãe Terra que nutre todo o meio ambiente. Desconectados, gananciosos e sem consciência dos estragos que causam à natureza, muitos homens ignoram este preceito para violentar repetidamente as entranhas da terra em busca de riqueza monetária. Sebastião Salgado cresceu na cidade mineira de Aimorés, banhada pela bacia do Rio Doce, mesmo local da fundação da maior empresa de mineração mundial a Vale, antiga estatal Vale do Rio Doce, responsável pelas duas maiores tragédias ambientais do Brasil nos últimos anos, quando se romperam as barragens de Córrego do Feijão, em Brumadinho, e do Fundão, em Mariana. A história do Brasil e também das Américas, assim como a de Salgado, estão intimamente ligadas à mineração. “Serra Pelada foi a primeira grande reportagem da série de histórias que integram o projeto Trabalhadores, concebido por Lélia [sua esposa] e eu sobre as transformações profundas que diversas profissões sofriam com a mecanização da força de trabalho”, diz o fotógrafo.
Juntos, Sebastião e Lélia planejaram cuidadosamente cada grande projeto clicado pelo fotógrafo: “Minha formação marxista de economia foi fundamental para entender as transformações promovidas pela divisão internacional do trabalho e, a partir daí, estruturar meus próprios projetos. Na época, as revistas eram semanais e tinham uma demanda grande por reportagens de fôlego. Eu já era fotógrafo da agência Magnum e sabia que jornais e revistas poderiam financiar parte do projeto Trabalhadores, pois se interessariam pelas séries de reportagens que eu propunha e eram parte do projeto”, me conta Salgado enquanto enche de água o copo do filho Rodrigo.
O EL PAÍS publicou, à época, um caderno especial com as imagens de Serra Pelada. “Aquilo era uma loucura, todo fotógrafo em atividade queria ir para Serra Pelada fotografar, mas as condições eram muito difíceis. O Exército brasileiro recusou meu pedido durante cinco anos, até que os garimpeiros se organizaram em cooperativa e, em seguida, me autorizaram a viajar até lá. Fiquei 33 dias morando num barraco com um amigo do meu pai que explorava um dos milhares de lotes de 2m x 3m. Quando cheguei lá, o murmúrio de milhares de homens que conversavam e batiam suas picaretas me arrepiou todos os pelos do corpo. Acharam que eu era um espião da Vale, infiltrado e interessado em comprar as terras, mas minha aparência de gringo e a câmera na mão me levaram à delegacia. Quando voltei da averiguação policial, todos os milhares de homens haviam simpatizado comigo. A aceitação foi fantástica”, relembra Salgado.
O projeto Gold-Mina de Serra Pelada foi concebido após um período de pausa forçada de Salgado, que se acidentara e machucou o joelho durante um trabalho. “Ele precisou ficar em casa se recuperando e decidimos olhar com calma para aquelas imagens emblemáticas de Serra Pelada. Daí nasceu o projeto”, conta Lélia. Dos anos 1980 até aqui, o sistema produtivo passou por revoluções tecnológicas que reconfiguraram as relações entre campo e cidade. “Quando nasci, cerca de 80% das pessoas no Brasil viviam no campo. Hoje esse número é o inverso”, diz Salgado. De lá para cá a força de tração animal e o trabalho braçal foram amplamente substituídos por grandes máquinas embora a mentalidade de exploração dos recursos naturais até seu esgotamento seja o modelo em vigor em companhias como a Vale e o próprio Estado brasileiro. Pouco se investe em tecnologia e educação.
“Hoje o novo Governo está promovendo um desmonte covarde das principais instituições de proteção aos direitos sociais e aos recursos naturais. Na verdade eles não têm programas para as áreas sociais e ambientais, porque não têm interesse nelas”, reflete o fotógrafo. Para além dos feitos fotográficos, Sebastião e Lélia criaram há mais de uma década o Instituto Terra, que trabalha para reflorestar mais de 7.000 hectares de mata atlântica nativa e já produziu mais de 4 milhões de mudas em viveiros. Atualmente o casal trabalha na recuperação da bacia do Rio Doce com apoio financeiro da Vale, responsável por danos irreparáveis à vida e ao meio ambiente na região em que Salgado nasceu. A região de Aimorés é de certa maneira uma outra Serra Pelada, com exceção das áreas reflorestadas pelo casal, não pelo ouro, mas pelo esgotamento absoluto dos recursos naturais promovidos por anos de exploração mineral. O leito do finado Rio Doce é margeado por pequenas montanhas carecas e de vegetação rala cuja desnutrição e pobreza do solo são visíveis a quilômetros de distância.
Quantos de nós já estiveram num garimpo ou presenciaram alguém "bamburrar" (expressão utilizada em garimpos para quem fica rico ao achar um filão de ouro)? Quantos conhecem a fundo os rincões do Brasil e da Amazônia? Sentiram a adrenalina de arrepiar os pelos, como diz Sebastião, quando um filão de ouro é encontrado? A febre do ouro continua viva e latente na cultura brasileira. Segundo reportou Leão Serva na Folha de S.Paulo, agentes da intencionalmente desestruturada Funai estimam que existem cerca de 20.000 homens garimpando ouro ilegalmente na Terra Indígena Yanomami. A história da mineração no país é manchada de sangue. “Vivemos num país muito atrasado, uma democracia juvenil onde as instituições são muito frágeis e parciais e, portanto, suscetíveis aos ataques políticos motivados por interesses financeiros”, diz Salgado, que trabalha atualmente, no auge de seus 75 anos, em um projeto na Amazônia, cuja contaminação pelo mercúrio, utilizado no garimpo, se alastra a galope pelos rios.
A obra de Salgado nos alerta e denuncia a deterioração do planeta pela exploração dos recursos naturais e as consequências do sistema capitalista nas relações sociais por meio da fotografia documental. “O que se faz hoje com os telefones celulares são imagens. Fotografia é outra coisa, exige tempo e muita dedicação. Para documentar as complexas relações entre homem e natureza é preciso fotografia, porque ela é o espelho da sociedade e por isso é tão importante”, responde o fotógrafo quando indagado sobre a importância da fotografia documental na contemporaneidade. Sebastião nos ensina a olhar para dentro, em direção a nossa formação e aos valores que carregamos desde a infância até a vida adulta, responsáveis por guiar as histórias que desejamos contar por meio das imagens. Escrevemos com luz e, como Salgado, com a sofisticação e o charme do preto e branco.
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