_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O que deixaremos de saber com os cortes nas perguntas do Censo

Nos questionários que serão aplicados foi cortado, por exemplo, o quesito sobre migração, o que significará que não teremos mais a informação sobre fluxos migratórios

Frequentadores da Universidade de Brasília, em 2014.
Frequentadores da Universidade de Brasília, em 2014.Edilson Rodrigues (Agência Senado)
Mais informações
A partir de 2021 o censo de Portugal pedirá a raça
Em ação histórica, Espanha fará pela primeira vez censo de vítimas da ditadura de Franco

São muitas as razões para que o Censo Demográfico em 2020 retrate com a maior fidelidade possível a realidade do país e de sua população. Trata-se de um investimento indispensável para que se possa fazer frente aos enormes desafios que teremos nos próximos dez anos. Entre eles, o enfrentamento da pobreza.

Depois de uma notável redução da pobreza no país, que perdurou até 2014, constata-se outra vez seu crescimento. Os dados disponibilizados em dezembro de 2018 pela Síntese de Indicadores Sociais do IBGE mostram que, conforme a linha de pobreza monetária adotada pelo Banco Mundial, que possuem rendimento de até 5,5 dólares por dia ou 406 reais por mês, a proporção de pessoas pobres no Brasil era de 25,7% da população em 2016 e subiu para 26,5%, em 2017. Em números absolutos, esse contingente aumentou de 52,8 milhões para 54,8 milhões de pessoas. Já o contingente de pessoas com renda inferior a 1,90 dólares por dia ou 140 reais por mês, que estariam na extrema pobreza, representava 6,6% da população do país em 2016, contra 7,4% em 2017. Em números absolutos, elevou-se de 13,5 milhões para 15,2 milhões de pessoas, somente em um ano. Esta situação se manifesta de forma diferente nas regiões do país. Se no Norte e Nordeste os pobres são respectivamente 43,1% e 43,4% da população, no Sudeste, Sul e Centro-Oeste são 15,9%, 12,3% e 17% dessas populações.

Mas que pobreza é esta? Quantos fazem parte da pobreza urbana e quantos da rural? Têm registro civil ou são invisíveis para o Estado? Qual o peso de uma nova pobreza que vem se formando a partir do atual quadro de desemprego, subemprego e daqueles que desistiram de buscar colocação no mercado de trabalho? E a crescente informalidade do trabalho repercute de que forma na população mais vulnerável? Como se organizam os esforços de sobrevivência dentro de cada domicílio? Presencia-se alguma retomada do trabalho infantil? Quais os papéis reservados a jovens e idosos nesse contexto? E mais além da pobreza monetária, como se configura a situação desses domicílios em relação às condições de habitação, saneamento e acesso de seus moradores aos serviços básicos?

Pesquisas também realizadas pelo IBGE trazem respostas parciais a muitas dessas perguntas. Particularmente, a PNAD Contínua e a POF oferecem dados importantes para o acompanhamento de nossa realidade, mas não chegam a partes do país que são provavelmente aquelas onde se encontram as populações mais vulneráveis. Por isso, o conhecimento dos dados no nível municipal, com a possibilidade de chegar aos setores censitários coletados pelo IBGE no Censo é fundamental para que as decisões governamentais acerca da aplicação de programas e políticas públicas possam ser as mais corretas, bem como permitindo o adequado direcionamento dos recursos orçamentários. Trata-se, assim, de um instrumento essencial para a construção de estratégias de médio e longo prazo para o enfrentamento da pobreza.

Causa preocupação o corte orçamentário para a realização do Censo 2020, bem como a exclusão de quesitos a serem pesquisados, contrariando aquilo que foi recomendado pelos experimentados técnicos do IBGE, que já preparavam sua realização há três anos. Essa decisão poderá ser muito danosa ao país. A interrupção de séries históricas que atestam o percurso que o país vem percorrendo e ao mesmo tempo a ausência de verificação sobre novas questões impostas pela atual realidade social enfraquecerá a efetividade de nossas políticas públicas.

Nos questionários que serão aplicados foi cortado o quesito sobre migração, o que significará que não teremos mais a informação sobre fluxos migratórios, em um momento em que eles são intensos. O quesito relativo ao valor do aluguel de domicílios não está mais no questionário da amostra, impedindo o cálculo do déficit habitacional. No tocante à rede de ensino frequentada por estudantes, não se pergunta se ela é pública ou privada. Quanto ao trabalho e a renda, deixa-se de perguntar, caso a pessoa tenha ocupação, se ela tem outros trabalhos além do principal. Além disso, a informação limita-se à pessoa de referência do domicílio, não considerando os outros moradores. Também foram retiradas as questões sobre os bens que o domicílio possui, como geladeira, automóvel e motocicleta, que antes constavam no questionário.

A alegação sobre a necessidade de gastar menos com o Censo ignora os prejuízos reais que decorrerão de uma pesquisa insuficiente e de menor qualidade. Por essas e tantas outras razões a defesa do Censo deve ser de todos.

Francisco Menezes é ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), e analista de Políticas da ActionAid no Brasil. É economista, com mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE).

A ActionAid é uma organização internacional de combate à pobreza presente em 45 países. No Brasil, atua desde 1999 realizando projetos pela garantia dos direitos à alimentação, igualdade de gênero, participação popular e educação.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_