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Cientista russo pretende criar mais bebês modificados geneticamente

Denis Rebrikov planeja experimento semelhante ao já feito na China, apesar da rejeição internacional

Manuel Ansede
O biólogo molecular russo Denis Rebrikov.
O biólogo molecular russo Denis Rebrikov.
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“Com modificação genética em bebês, China criou uma nova estirpe de humanos”
Cientista chinês que modificou geneticamente dois bebês defende seu experimento

Pouco mais de meio ano depois do nascimento dos dois primeiros bebês geneticamente modificados, na China, um cientista russo anunciou que pretende realizar outra experiência similar, apesar da rejeição unânime da comunidade internacional. O pesquisador Denis Rebrikov planeja alterar em laboratório o DNA de embriões de mães com vírus HIV, a fim de evitar sua transmissão ao recém-nascido, segundo informou à revista Nature.

Rebrikov, um biólogo molecular, dirige um laboratório na maior clínica de fertilidade da Rússia, o Centro Nacional Kulakov de Pesquisa Médica em Obstetrícia, Ginecologia e Perinatologia de Moscou. Como no caso do cientista chinês Hei Jiankui, sua intenção é modificar o gene CCR5, que contém as instruções para fabricar uma proteína que o vírus da AIDS emprega como porta de entrada para os glóbulos brancos do sangue. Rebrikov pretende imitar uma mutação natural, presente em 1% dos europeus, que gera certa imunidade ao vírus. Para isso é necessário apagar 32 das 6.000 letras do gene mediante a revolucionária técnica CRISPR, uma espécie de tesoura molecular capaz de cortar o DNA onde o cientista quiser — embora ainda ocorram erros perigosos.

Rebrikov planeja alterar o DNA de embriões de mães com o HIV para evitar a transmissão do vírus

“Alterar o genoma humano no embrião é uma nova estratégia para a qual ainda não há nenhuma legislação adequada nem uma percepção pública positiva. Nossa sociedade é muito conservadora”, declarou Rebrikov em outubro passado ao jornal russo Pravda.

“A tecnologia não está preparada”, adverte agora na revista Nature a bióloga molecular Jennifer Doudna, uma das mães da técnica CRISPR, em seu laboratório da Universidade da Califórnia em Berkeley. Sobre o anúncio do cientista russo, Doudna acha que “não é surpreendente, mas sim decepcionante e inquietante”.

Em 29 de novembro de 2018, a segunda cúpula internacional sobre a edição do genoma humano, realizada em Hong Kong, terminou com a advertência de que “os riscos são grandes demais para permitir ensaios clínicos de edição da linha germinal humana neste momento”. Rebrikov, entretanto, confia na segurança da técnica. Em outubro, o russo publicou, em uma desconhecida revista que ele mesmo dirige, uma pesquisa cujos resultados mostram uma suposta eficácia de 50% na criação de embriões com o gene CCR5 alterado.

Rebrikov, segundo a informação publicada pela Nature, considera que conseguirá a autorização oficial para a pesquisa graças a passagens ambíguas na lei russa. O cientista chinês Hei Jiankui justificou seus experimentos alegando que o pai das gêmeas tinha HIV. No caso russo, Rebrikov pretende recrutar mães soropositivas que não respondem aos principais tratamentos com antirretrovirais, uma abordagem que atualmente evita muitos casos de transmissão vertical do HIV.

A imunologista Denise Naniche recorda que já existe “um arsenal de fármacos” para evitar a transmissão materno-infantil do HIV

A imunologista Denise Naniche, chefe do grupo de HIV/AIDS do Instituto de Saúde Global de Barcelona, acredita que a ideia de Rebrikov não tem fundamento. Entre 15% e 45% das mães soropositivas transmitem o vírus a seu filho durante o parto ou lactação, mas os atuais tratamentos reduzem esse percentual a menos de 5%, segundo a Organização Mundial da Saúde. “As mulheres às quais o pesquisador se refere vivem em regiões que nunca teriam acesso a uma hipotética intervenção de edição genética de embriões, por seu custo e pela falta de infraestrutura”, observa Naniche. Cerca de 85% das transmissões do HIV de mãe para filho ocorrem na África Subsaariana, salienta.

Naniche recorda que já existe “um arsenal de fármacos antirretrovirais” que permite mudar de terapia quando o vírus resiste ao primeiro tratamento. O problema é o preço desses medicamentos de segunda linha. Para a imunologista, seria “muito mais ético e eficiente em relação com seu custo” facilitar estes tratamentos nos países pobres.

O químico Marc Güell foi testemunha do nascimento da técnica CRISPR na Universidade Harvard. O pesquisador, agora na Pompeu Fabra, de Barcelona, vê “a necessidade de aprender mais sobre a tecnologia mediante experimentos em ciência básica e cogitar sua aplicação possivelmente em alguns casos muito concretos de enfermidades graves”, mas não entende a escolha do gene CCR5. “Neste caso não acredito que os benefícios sejam maiores que os riscos. Prevenir a contaminação por HIV de pais para filhos é algo bastante estabelecido por outros métodos”, diz.

Há uma semana, cientistas da Universidade da Califórnia em Berkeley alertaram que a mutação natural do gene CCR5 — nas duas cópias que cada pessoa possui — estava associada a um aumento de 21% na mortalidade antes dos 78 anos, segundo a análise de uma base de dados de 400.000 cidadãos do Reino Unido. “Não conhecemos todos os efeitos da mutação”, adverte o biólogo dinamarquês Rasmus Nielsen, coautor daquele estudo.

Nielsen acredita que o experimento do chinês Hei Jiankui tenha sido “imprudente”, dada a falta de conhecimento sobre a mutação e os possíveis erros da técnica CRISPR, ainda em fase experimental. “O uso da tecnologia em embriões é injustificável. Já se discutiu amplamente. Se Rebrikov repetir o experimento agora, será duplamente imprudente e carente de ética, mas suponho que as autoridades russas irão impedi-lo antes que chegue tão longe”, opina Nielsen.

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