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Coluna
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Você também, Portugal?

A “brincadeira” sangrenta dos estudantes de Direito portugueses contra seus irmãos brasileiros é ainda mais grave por causa do simbolismo que a envolve

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Alunos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa deram pedras para serem jogadas em estudantes brasileiros, desdenhosamente chamados de “zucas”. O fato ocorreu há alguns dias e o mais grave é que, em vez de ser visto como um ato de racismo e xenofobia em um momento em que cresce na Europa a cizânia de novos nazismos e a intolerâncias contra os diferentes, foi considerado pelas autoridades da universidade como pouco menos que uma brincadeira. E tudo se limitou a uma “investigação disciplinar” contra os “engraçadinhos”.

Uma das alunas brasileiras que se consideraram ofendidas, Maria Eduardo Calado, de 24 anos, disse ao jornal O Globo: “Estamos vivendo muito ódio e as pessoas acham que isso é normal”. E a juíza brasileira Daniele Hampe, que faz graduação na mencionada universidade, disse que não se tratou de uma brincadeira, mas de “uma incitação à violência, como todos puderam ver”.

A notícia da ideia de distribuir pedras colocadas em um cesto na entrada da universidade para lançá-las contra os colegas brasileiros ainda teve o sarcasmo de anunciar que “as pedras eram grátis”. E a Faculdade de Direito não condenou explicitamente esse gesto de desprezo pelos estudantes brasileiros.

Pessoalmente, a notícia me chocou duplamente, porque considero que neste momento Portugal, com o seu Governo progressista e social, é uma ilha na Europa, em que cresce a extrema direita que quer voltar aos tempos das guerras entre irmãos e cerceia os direitos humanos e as liberdades conquistadas com tanto sacrifício e tanto sangue.

No Brasil, hoje, Portugal é visto como uma meca em que milhões de jovens colocam os olhos. Brasileiros. Encontrei muitos deles que me disseram com olhos de alegria, que seu “sonho é poder ir trabalhar em Portugal”. Eles veem essa meca — ao lado do Brasil de hoje, atingido pela falta de oportunidades e pela caça às bruxas da intolerância — como uma ilha de paz.

Que esses jovens que conseguem ir estudar em universidades da importância da Faculdade de Direito de Lisboa, ao chegarem ali encontrem na porta da universidade uma caixa cheia de pedras, que os alunos portugueses oferecem “grátis” para serem jogadas contra eles, o mínimo que podem sentir é a profunda frustração de terem sido enganados. Essas pedras, mesmo sem usá-las, já haviam feito sangrar seus sonhos.

Não, não era e nem poderia ser uma brincadeira e esses estudantes mereciam no mínimo a expulsão da faculdade. O silêncio cúmplice das autoridades acadêmicas, ao que parece por motivos políticos de eleições dentro da universidade, é tão ou mais grave do que o silêncio dos alunos xenófobos.

A universidade, já em sua etimologia que evoca o “universal”, sempre foi o lugar onde todas as liberdades são semeadas e cultivadas, onde todos os estudantes do mundo têm acolhida, onde todo conhecimento humano pode ser cultivado em liberdade. Quando, por outro lado, se torna um antro de ideologias e discriminações, acaba profanando sua própria essência e razão de ser.

A “brincadeira” sangrenta dos estudantes de Direito portugueses contra seus irmãos brasileiros é ainda mais grave por causa do simbolismo que a envolve. Qualquer universitário deve saber que uma caixa de pedras, preparadas para serem lançadas em alguém, não pode deixar de evocar uma das formas de castigo mais brutais e sangrentas desde os tempos mais antigos, como a morte por lapidação da qual só restam vestígios em alguns países da África, da Ásia e do Oriente Médio. Foi considerada uma das expressões mais bárbaras que a humanidade foi capaz de conceber para tirar a vida. Vi a foto da caixa com as pedras dadas para serem atiradas contra os estudantes brasileiros e me deram um calafrio. Tinham a medida exata que ainda hoje se exige para esse espetáculo macabro, para acertar as vítimas, geralmente mulheres. Não devem ser grandes demais, para que o condenado não morra demasiado rápido, nem tão pequenas que não bastem para arrancar-lhe a vida. Devem ser de tamanho médio, para que a vítima possa suportar o sofrimento pelo maior tempo possível.

Não digo que os alunos xenófobos portugueses chegaram a pensar no rito infame da lapidação, mas curiosamente aquelas pedras eram da mesma medida das que ainda se usam, levadas em sacos ou caminhões onde, especialmente em países islâmicos, continuam sendo usadas.

Mais do que a abertura fria e burocrática de um processo “disciplinar”, as autoridades da Universidade de Lisboa já deveriam ter pedido desculpas às vítimas e ao Brasil, um país que sempre acolheu, não apenas com respeito, mas com carinho, os seus alunos e pesquisadores.

Vivemos tempos em que até uma brincadeira pode se tornar uma bomba atômica. A vigilância na defesa das liberdades e contra toda discriminação deve ser redobrada. O ódio é um veneno que é inoculado em silêncio. Como acaba de afirmar em uma entrevista a este jornal o psiquiatra espanhol Luis Rojas: “Pedir perdão” e ter a coragem de dizer “te amo” é fundamental “porque sem ele não há futuro na vida”. Do ódio à explosão de uma guerra há apenas um suspiro. O perdão apaga até os incêndios mais devastadores. E hoje esses incêndios começam a nos cercar de maneira ameaçadora também no Brasil, esse grande país, que já deu exemplo para o mundo de acolhimento de diferentes, com vocação de paz.

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