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Coluna
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As três categorias de pessoas que Bolsonaro tem pressa para “facilitar a vida”

Vocês imaginam quem o presidente deseja, e com urgência, favorecer? Trata-se dos “colecionadores de armas, dos atiradores e dos caçadores”

O presidente Jair Bolsonaro no último dia 9 de abril.
O presidente Jair Bolsonaro no último dia 9 de abril. Eraldo Peres (AP)
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Fiquei curioso ao ler no último dia 11, quinta-feira, que o presidente Jair Bolsonaro, em meio ao caos que vive seu Governo, acabara de anunciar que tinha decidido, em caráter de urgência, primeiro com um decreto e em seguida com um projeto de lei, “facilitar a vida” de três categorias de pessoas. A notícia foi dada por Manoel Ventura no jornal O Globo.

O presidente devia ter consciência de que o fato não era banal já que antecipou que o decreto-lei “dará o que falar”, mas que ele “havia decidido democraticamente” a favor dessas três categorias, depois de ter consultado “membros do Exército e da Polícia Federal”. Vocês imaginam quem o presidente deseja, e com urgência, favorecer? Trata-se dos “colecionadores de armas, dos atiradores e dos caçadores”.

Fui ingênuo quando, por um instante, cheguei a pensar que poderiam ser medidas importantes do presidente em matéria social para favorecer as categorias mais sofridas e abandonadas da sociedade. Por exemplo, esses seis milhões de brasileiros que, contra o que exige a Constituição, que obriga a garantir a todos trabalho e moradia, ainda carecem de um lugar para morar. Ou aos que se refugiam nas grandes periferias violentas das cidades, em casebres que os pecuaristas recusariam para seus animais pelo seu grau de insegurança, como vimos dias atrás na tragédia da favela de Muzema, no Rio, dominada pelas milícias, onde dois edifícios acabaram em pó sob o pânico de seus moradores com um balanço até agora de onze mortos.

Imaginei, também em vão, que outra categoria que Bolsonaro decidiu facilitar a vida era a desses milhões de trabalhadores que vivem todos os dias o drama de ter de se deslocar de periferias distantes e violentas para o centro da cidade para ganhar seu pão. Falem com eles e contarão histórias que ferem a dignidade humana, tendo de usar até três meios de transporte, sempre os piores, superlotados, perigosos pelos assaltos, sem um mínimo de conforto. E depois um árduo dia de trabalho, voltar a empreender o retorno para casa com o acréscimo do cansaço do dia. E assim semanas, meses e anos.

Pensei, finalmente, que o Presidente, com a sua obsessão pelo tema da educação, poderia ter decidido redimir esse exército de professoras que cuidam de 24 milhões de alunos e sobre as quais recai a responsabilidade de construir o Brasil do futuro. Acreditei que, em vez de se perder nos labirintos da Escola Sem Partido e outras loucuras que ofendem o bom senso, teria decidido redimi-las pelo menos da miséria de seus salários que lhes impede de continuar se atualizado em uma matéria em evolução no mundo. Que havia decidido, como nos países modernos, acabar com seus salários de miséria. Enquanto, por exemplo, no Canadá, uma professora primária pode ganhar como um juiz ou um senador, aqui no Brasil, pasmem!, o Estado gasta para pagar o salário de uma professora primária durante oito anos o mesmo que gasta com um deputado em um mês entre salário e privilégios. Difícil encontrar um adjetivo para tamanha injustiça.

Só que o meu foi apenas um sonho. Quando li a notícia completa das três categorias às quais Bolsonaro havia decidido, e com celeridade, “facilitar a vida”, não eram nenhuma daquelas que havia imaginado. Eram três categorias de pessoas que cultuam as armas, todas elas objetos criados para matar. Evocam a morte mais que a vida.

Não entendi por que ajudar os que colecionam não obras de arte, mas pistolas e fuzis. Ou como favorecer os atiradores, a não ser que, em vez de multiplicar nas cidades as creches e os centros de emergência médica, prefira multiplicar as academias de tiro. E os caçadores? O presidente já havia anunciado que queria favorecer o turismo na Amazônia. Será que está pensando em organizar, como em alguns países africanos, o turismo de caçadores de animais selvagens, onde existem até listas de preço de acordo com o tipo de animal que se escolhe para matar, por exemplo, um elefante, um leão, uma girafa ou um chimpanzé. Matar um filhote de elefante é geralmente mais barato, por exemplo, do que um elefante adulto. Na Amazônia, os caçadores furtivos da onça pintada estão extinguindo um dos animais mais belos do mundo. Será que o presidente quer regularizar a caça dessas joias da nossa Amazônia?

Lembro que, a respeito dos países que permitem aos turistas, pagando, abater animais selvagens, quando em abril de 2012 se descobriu na Espanha, que o então rei Juan Carlos I, que gozava da estima até de muitos não monarquistas por seu equilíbrio em manter a unidade do país, tinha ido às escondidas a Botsuana, na África, para matar um elefante. Ele sofreu a vingança dos animais ali mesmo. No hotel da reserva, quebrou uma perna. Um avião teve de ir de Madri para buscá-lo e a notícia se tornou pública. Desde então, coincidência ou não, uma série de reveses foram caindo sobre a figura do Rei, que se eclipsou e acabou abdicando dois anos depois em favor de seu filho, Felipe.

No Brasil, hoje, milhões de pessoas precisam e com urgência de que se lhes facilite a vida mais do que aos colecionadores de armas ou aos caçadores de animais. Neste país em que se tenta mudar a legislação para que cada vez seja mais fácil caçar humanos impunemente, Bolsonaro manifesta pressa em facilitar também a vida dos caçadores de animais. Os valores da vida e da dignidade da pessoa vão se desvanecendo a cada dia, enquanto cresce a paixão por armas e pela violência. Agora também contra os animais. Falta algo mais?

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