A “Intervenção de educação” que revolucionou o ensino de uma cidade do sertão
Formação para pais, alfabetização com foco em justiça social e arte na escola são algumas das ações que fizeram Oeiras evoluir nos indicadores de aprendizagem
Os problemas da educação brasileira são conhecidos. Há muitos anos o sistema educacional do país opera em uma engrenagem onde a baixa remuneração atrai profissionais mal capacitados para escolas sem infraestrutura adequada, produto de investimentos públicos insuficientes, que oferecem um currículo sem conexão com a realidade, e entregam para a sociedade o fracasso escolar.
Reformular esta engrenagem não é uma tarefa fácil. Oeiras, a cidade do sertão do Piauí que em sete anos conseguiu saltar nos indicadores de educação, passou por um processo que os próprios educadores chamam de "intervenção de educação", em que várias práticas inovadoras foram implementadas para melhorar a qualidade do ensino, considerado como um "doente na UTI", de forma rápida e eficaz. O EL PAÍS selecionou algumas ações que fizeram a diferença.
Escola da família, para toda a família
“Educação: De quem é a bola? Dos pais ou da escola?” Este é um dos temas dos cinco encontros anuais que as escolas promovem com os pais. A tradicional reunião bimestral “para falar mal dos estudantes”, e tão odiada pelos pais, foi abolida na rede de Oeiras. Segundo Tiana Tapety, secretária de educação da rede municipal de Oeiras, o tempo da escola de falar com os pais e o tipo de relacionamento que constroem é diferente. Na primeira reunião, os pais recebem um informe pedagógico com o resumo das atividades mais importantes do ano e seus objetivos. “Conversamos com os pais o tempo todo”, conta.
O objetivo é formar um elo e estimular os pais a participarem do processo de aprendizagem de seus filhos como parceiros. São nessas reuniões que a rede explica como funciona a escola, o que é o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e discute temas que ajudam no desenvolvimento das competências socioemocionais dos alunos. Trata-se de aptidões emocionais de cada pessoa, como resiliência, tolerância, perseverança consideradas fundamentais para preparar os estudantes para os desafios deste século. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), referência para a construção de currículos de todas as escolas do país, foi constituída com base em dez competências gerais a serem desenvolvidas nas escolas como pensamento científico, crítico e criativo, repertório cultural, comunicação, cultura digital, empatia e cooperação e responsabilidade e cidadania.
O desenvolvimento destas competências dependem do trabalho junto à família. Tapety conta que muitas crianças de Oeiras vivem em situação de extrema vulnerabilidade, onde há carência de tudo, inclusive de afetividade. "Na escola, as recebemos com abraço e carinho, que muitas vezes elas não têm em casa", lembra a secretária. Dentre os temas trabalhados neste ano também estão: Conflitos na escola: espelho da sociedade, e Quem ama cuida.
“Escola da Família é o momento em que o pai aprende. É formação”, afirma Tapety. Ao colocar o pais na posição de aluno, a escola trabalha com um modelo de acolhida, assim como é feito no começo de cada dia letivo, quando as crianças são reunidas no pátio para recados, abraços, comemorações de aniversário, por exemplo. “Eles dividem as dúvidas, entendem as dificuldades dos alunos e percebem que as angústias que eles têm são as mesmas de outros pais”, explica Tapety.
Alfabetização adequada como base de todo o ensino
Quando você passa do portão das escolas de Oeiras, até mesmo o barulho tem objetivo pedagógico. As escolas funcionam com uma ordem que pode desagradar aos mais liberais. Na sala de aula não se confunde liberdade com excessos. Os alunos são inquietos, mas entendem o silêncio pedagógico necessário para aprender. Os barulhos estão presentes nas aulas de música, capoeira, artes, dança, recreio, debates. Sempre com algum sentindo.
A necessidade de uma ordem escolar que transforma até o barulho ambiente faz parte do projeto criado pelas pedagogas Osana Morais e Ruthnéia Lima, e adotado pelas escolas municipais Oeiras. Batizado de Projeto Borboleta, a metodologia funciona como uma ponte para a reconstrução da prática pedagógica alfabetizadora, que modifica desde a sala de aula até a gestão da escola. Nascido da experiência de uma escola pública em Teresina, a Casa Meio Norte, o projeto visa fazer com que a criança leia com competência, compreenda as diferentes linguagens do mundo e possa se posicionar com independência. Tudo isto de forma rápida e eficiente.
A metodologia não trabalha com tecnologias. Seu pilar de atuação é o professor, que não pode mais estar só na sala de aula. “Temos que ter um olhar empático sobre o ofício do professor, pois é uma responsabilidade integrada essa alfabetização, de todos os sujeitos que atuam na escola”, afirma Osana Morais.
Outro ponto de partida é a crença de que as crianças são capazes de aprender absolutamente tudo, desde que dada as condições necessárias. O projeto leva em conta que a entrada das crianças na escola é desigual, mas que é possível equalizar a saída. “Nosso objetivo não é só igualdade de oportunidades, mas sim uma prática pedagógica que garanta justiça social. Para isso, temos um tratamento desigual na sala de aula, a fim de dar a quem precisa, o que precisa para poder aprender”, explica Morais.
O projeto começa com o que as educadoras chamam de “olhar demorado sobre a criança. “Precisamos saber quem é a criança, o que ela sabe, o que ela faz, como é sua família, como é a sua aprendizagem. Isso é feito por meio da escuta [literalmente sentar e ouvir o estudante], para identificar seu nível de leitura, sua visão de mundo, sua compreensão da vida e de como ela reage aos desafios postos”, explica Morais.
A partir deste diagnóstico é possível ver qual o nível de leitura dos alunos e traçar estratégias para equalizar os estudantes. O Projeto Borboleta também avalia os educadores. “Assim como os melhores médicos, os melhores professores vão para a UTI da aprendizagem, onde as crianças têm mais dificuldade”, explica.
Alunos dos anos iniciais do ensino fundamental são divididos em fases de aprendizado e não classes, séries ou ano como na escola tradicional. Na fase 1, são Borboletas – ainda sem leitura ou iniciantes; na fase 2, Andorinhas – têm uma leitura mecanizada; na fase 3, Gansos – leem silabando, ainda sem perceber completamente os significados; e na fase 4, Águias – possuem leitura plena, com compreensão das referências implícitas dos textos.
Os nomes foram escolhidos para serem facilmente compreendidos pelas crianças. "Os próprios alunos entendem em que nível estão e onde podem chegar", conta a secretária de educação. Borboleta são as crianças em fase embrionária, no casulo, e que quando estiverem prontas vão voar. As andorinhas já voam, escrevem além de rabiscos, balbuciam sons na leitura, mas ainda não têm segurança. Gansos são as crianças que voam baixo, mas já sabem ler. Já os alunos águia voam alto, interpretam os textos e o mais importante, têm consciência disto. “Conseguimos fazer com que o aluno borboleta, em 45 dias de trabalho, consiga ler com competência, porque trabalhamos com o que é significativo para o aluno”, explica.
Arte para desenvolver habilidades do futuro
Se a alfabetização é a base de todo o trabalho em Oeiras, é a arte que faz a ponte entre os saberes. “A arte é transversal em todas as nossas atividades”, afirma Tiana Tapety. As escolas têm núcleos de cultura onde estão disponíveis diversas aulas, como os cursos de bandolim, um saber tradicional da região, que foi resgatado pela rede de educação. A aposta de Oeiras está em linha com pesquisas internacionais que mostram que a arte é o caminho para o desenvolvimento da criatividade e pensamento crítico – habilidades consideradas essenciais para garantir empregabilidade no futuro.
O ponto alto das atividades é a Feira Literária de Oeiras (FLOR), que finaliza o ano letivo do projeto “Aprendendo com...”, que este ano homenageou a escritora Roseana Murray. O projeto de incentivo à leitura começou em 2013, com o trabalho com as obra de Monteiro Lobato. Desde então foram homenageados Ziraldo, Mauricio de Sousa, Ruth Rocha e Cineas Santos. Em 2019, a cidade vai trabalhar com as obras de Ilan Brenman, um dos autores mais importantes da literatura infanto-juvenil brasileira.
A maior preocupação de Tiana Tapety é ampliar as atividades de cultura para todas as escolas, e garantir equidade na zona rural. Para tal, optou por fazer ações controversas, como o projeto de nucleamento de escolas, que, na prática, significa fechar as unidades com poucos alunos em locais de difícil acesso e que não atraem professores. Muitas destas escolas estavam em áreas de remanescentes de quilombos e assentamentos e a 80 km do centro da cidade. A rede tinha 77 escolas em 2013, passou para 29. Não sem críticas. “Muitos pais não aceitavam, pois os filhos teriam que pegar transporte para ir à outras escolas. Mas com o tempo eles entenderam que com o nucleamento podíamos oferecer condições melhores”, conta.
Nem todas as escolas têm núcleos de cultura, mas atividades literárias estão ao acesso de todos. Aliás, todas as atividades artísticas são arcadas pela Prefeitura de Oeiras, inclusive roupas e figurinos. “Tive estudante com medo de se inscrever em cursos pois os pais não teriam dinheiro de pagar nem uma presilha de cabelo. Por isso, para dar acesso igual a todos, compramos até a presilha”, afirma Tapety.
Nenhuma criança a menos
Com o ano letivo quase no fim, a professora Clegilda Matos prepara o material que será utilizado nas férias por um de seus alunos com múltiplas deficiências. Ela vai treinar a mãe para continuar o trabalho em casa, para que seu estudante “não perca nada”. É um processo bastante individualizado, baseado em todo um ano de atuação com o estudante. A pedagoga é uma das responsáveis pelas salas multifuncionais da rede de Oeiras, que têm como objetivo garantir que nenhuma criança ficará para trás.
Oeiras tem um histórico de casamentos consanguíneos e muitas crianças com deficiência na rede, que tem a escola não só como base de educação, mas também de socialização. “Nossas crianças fizeram apresentação na FLOR. Uma mãe me disse que o filho nunca havia participado de nada”, afirma Matos.
A pedagoga é enfática em afirmar que criança com deficiência não aprende nas escolas regulares porque dá trabalho. “A gestão tem que abraçar a causa. O tempo de aprendizado é diferente e isto é enfadonho para muitos profissionais. Mas eles aprendem sim”, afirma. Na salas, muitos materiais reciclados. “Não existe desculpa. Reaproveitamos tudo e se precisar de algo a coordenação tem que correr atrás”, diz a professora.