Tribuna

O terceiro turno de Bolsonaro

O desafio das coalizões, com o Congresso mais fragmentado e o orçamento mais apertado do que nunca, se apresentará novamente

Jair Bolsonaro ao lado de Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista.Marcelo Teixeira (REUTERS)

A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições deste ano confirma o fim de um período de 25 anos de protagonismo de PT e PSDB em pleitos presidenciais.

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Beneficiário direto da onda de insatisfação que tomou conta do país a partir de 2013, o capitão da reserva destronou ambos os partidos do predomínio que tinham sobre segmentos distintos do eleitorado. Com o discurso anticorrupção, atingiu em cheio o eleitor tucano das classes média e alta, descrente de que o PSDB poderia continuar empunhando a bandeira da ética. Com a agenda da segurança pública (mas também do combate à corrupção), cativou o eleitorado pobre do PT nas grandes cidades, mais sujeito à criminalidade que se alastra periferias afora.

Como elemento de fundo a unir os dois discursos e envolver ambos os segmentos, Bolsonaro introduziu, de modo sem precedentes na Nova República, uma pauta ultraconservadora, com forte conteúdo religioso, que faz o tucanato —aquele que considerávamos, até aqui, a “direita”— parecer anarquista.

Conquistada a vitória sobre as duas forças políticas de expressão nacional, Bolsonaro terá pela frente a mais desafiadora das etapas: lidar com o poder local, ao qual tanto PT quanto PSDB sucumbiram durante os anos em que governaram.

A história nos mostra que petistas e tucanos praticaram um “reformismo fraco” (na expressão de André Singer), sem romper com as estruturas de poder vigentes. Resignados às raízes profundas dos pequenos rincões, sustentaram-se no fisiologismo e nas bases locais do MDB e do centrão para perpetuar-se, enquanto levaram ao nível nacional divergências pontuais em questões sociais e macroeconômicas.

“Toda política é local”, apontava um ex-deputado norte-americano. A incapacidade de PSDB e PT em combater privilégios patriarcais e ir a fundo na questão da distribuição de renda impediu a transformação do Brasil numa democracia moderna e acabou por triturar as raízes urbanas e sociais das duas legendas: os tucanos, num lampejo, chegaram a clamar em vão por um retorno a suas origens social-democratas, mas seu maior sucesso eleitoral veio apenas com o distante voto “bolsodoria”; os petistas amparam-se no que resta do lulismo, versão deturpada e personalista do petismo histórico.

Fenômeno global, o avanço da ultradireita conservadora assumiu, no caso brasileiro, contornos de oposição radical a essa luta bipartidária, manipulada pelos mais diversos interesses locais e corporativistas representados no Congresso Nacional.

Como fez parte do baixo clero legislativo por quase 30 anos, é provável que Bolsonaro entenda a fisionomia da Casa e os principais mecanismos que movem seus atores. O fato de defender agendas comportamentais e estruturantes similares à do parlamentar médio o aproximará, naturalmente, das bancadas evangélica, da “bala” e do agronegócio.

Contudo, a estratégia de governar com frentes temáticas comporta alguns riscos, como a possível antipatia de caciques partidários. Além disso, nem todas as agendas sensíveis do país se resumem à tríade “Boi-Bala-Bíblia”, como demonstra a turbulenta questão da reforma da Previdência. Nessa pauta, assim como em outras, haverá elementos de pressão adicionais em jogo, a começar pelas corporações que verão seus interesses afetados pelas eventuais mudanças.

Por fim, a afinidade de valores com parlamentares, embora ajude a governabilidade, não é suficiente para garanti-la. Os representantes das localidades, carentes de recursos públicos e de repasses do governo federal, pedirão cargos e cobrarão sua fatura em cada votação, como temos visto no tradicional “toma-lá-dá-cá” da Nova República. O desafio das coalizões, com o Congresso mais fragmentado e o orçamento mais apertado do que nunca, se apresentará novamente.

Some-se a isso a oposição ferrenha da expressiva bancada do PT e a dificuldade em se alcançar um padrão de governabilidade com o judiciário, ator cada vez mais ativo no jogo político brasileiro.

Que venha o terceiro turno.

Guilherme Quintão, é cientista político e diplomata. As opiniões emitidas no texto são de inteira responsabilidade do autor, não coincidindo necessariamente com posições do Governo brasileiro.

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