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Eliane Brum: “Nenhuma narrativa substitui a reportagem como documento sobre a história em movimento”

Discurso da colunista do EL PAÍS lido durante o prêmio Comunique-se destaca o papel imprescindível do jornalismo num momento brutal do Brasil. Xico Sá também venceu prêmio na categoria Cultura pelos textos publicados neste jornal

É preciso ter a alma aberta, um olhar sensível, e coragem para resistir e insistir no jornalismo que conta a verdadeira história de uma nação a partir das pessoas comuns, ou simplesmente anônimas, quando não, invisíveis. É pelo olhar desses personagens que se enxergam as reais cores e dores de um país como o Brasil. A colunista Eliane Brum, que escreve quinzenalmente no EL PAÍS desde o início da edição brasileira em 26 de novembro de 2013, tem sido fiel a esse princípio desde que começou na carreira no final dos anos 80. É o jornalismo que não passa pelos palácios, nem por gabinetes, nem pelas fontes do mercado financeiro, ou pelos corredores do Judiciário, como destacou o jornalista Caco Barcellos, premiado pela quinta vez na categoria “Mídia Falada” no prêmio Comunique-se, na noite desta terça, dia 11.

Brum também foi premiada, na categoria "Colunista". É o quarto prêmio Comunique-se da sua carreira, e mais um que se junta aos mais de 40 que esta gaúcha de Ijuí já acumula por ter se tornado um espelho da alma brasileira. Tem sangue de repórter, e todo repórter que se preze é brindado pela sorte de estar no lugar certo na hora certa. Nem sempre para escrever boas notícias. Foi assim durante o incêndio do Museu Nacional, no último dia 2. A jornalista havia sido convidada para um evento no Museu do Amanhã. “Eu vim ao Rio para um evento no Museu do Amanhã. Então descobri que não tinha mais passado. Diante de mim, o Museu Nacional do Rio queimava.”, começava o texto O Brasil queimou – e não tinha água para apagar o fogo, que ela escreveu e publicou poucas horas depois das chamas consumirem o museu.

A indiferença do Brasil pelo que deveria ser a sua riqueza é a linha condutora das colunas de Eliane Brum nestes quase cinco anos no EL PAÍS Brasil. Textos que cativaram leitores inclusive no exterior, e já são publicados em espanhol tanto no portal Américas, que alcança todos os países de língua hispânica, como na Espanha, chegando aos leitores europeus.

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Como ela, o jornalista e escritor Xico Sá também foi premiado nesta terça na categoria Cultura por seus textos publicados no EL PAÍS. Textos que não fogem das críticas ácidas ao retrocesso que a política tem imposto ao país – “meu nome é Democracia e meus tímpanos foram estourados pelos megafones da intolerância,” escreve Xico no texto Me chamo Democracia e peço socorro no Brasil, mas que também sabem brindar o leitor com histórias de amor, seja pelo Cariri, pela filha Irene, ou pelo exercício de escrever cartas de amor. “O cheiro do pequi espanta o raio gourmetizador a léguas de distância”, escreveu o versátil escritor em Uma viagem de volta ao Cariri. Já em Uma carta de amor vale por mil nudes, Xico escreve “Você aí, que vive um amor à distância, nada como uma carta fumegante, daquelas capazes de queimar os dedos dos carteiros”. Em seu discurso de agradecimento, Xico lembrou que o jornalismo é importante “porque luta contra a barbárie e o fascismo”.

Em comum entre Eliane Brum e Xico Sá, está o acalento por um Brasil mais justo, mais humano, mais inclusivo, valores estes que o EL PAÍS Brasil também partilha. A seguir, publicamos a íntegra da carta de agradecimento de Brum, lida durante o prêmio Comunique-se, que retratam o que este jornal acredita.

“Infelizmente não pude estar com vocês nesta noite porque, neste momento, estou em São Francisco, na Califórnia, para a Cúpula do Clima. Mas sei que estou muito bem representada pela Carla Jimenez, diretora de redação do El País Brasil. Queria começar justamente agradecendo à Carla e ao El País pelo respeito absoluto pelo meu trabalho. Publiquei minha primeira coluna no El País no primeiro dia do El País no Brasil e, desde então, encontrei no El País o melhor espaço para exercer o jornalismo que acredito. Tenho muito orgulho de fazer parte deste projeto que, em cinco anos, marcou uma diferença de qualidade e conquistou um lugar de independência no jornalismo feito no Brasil.

 Quero também agradecer ao Comunique-se por todos os anos se esforçar para a realização deste prêmio, apesar das turbulências do país. E, principalmente, agradecer a todos que, com o seu voto, reconheceram o meu trabalho e me trouxeram até aqui.

Este é um momento brutal para o Brasil. A imagem do Museu Nacional do Rio em chamas literaliza a profundidade da nossa crise. O Brasil queima.

Estamos à beira de uma eleição em que o candidato em primeiro lugar nas pesquisas está preso e impedido pelo judiciário de disputar a eleição. E o candidato em segundo lugar levou uma facada num evento de campanha. É crescente o sentimento de que o judiciário não faz justiça, de que o voto vale cada vez menos e de que vivemos o que poderíamos chamar de democracia sem povo: a cada dia mais um direito a menos.

Num momento de crise climática, a maior relevância do Brasil no cenário internacional é ter no seu território a maior porção da maior floresta tropical do mundo. Mas desde que os ruralistas se tornaram fiadores do governo, cresce o poder da grilagem na Amazônia e os desmatadores avançam justamente sobre as áreas protegidas. Em Anapu, onde a missionária Dorothy Stang foi morta em 2005, hoje a situação é muito mais explosiva. Desde 2015, 16 camponeses foram assassinados sem que nada se mova neste país. Nas comunidades do Rio, cabeças de crianças negras têm sido arrebentadas à bala, antes e depois da intervenção. O Brasil não tem guerra, o que tem é massacre. E há séculos ele destrói os mesmos corpos: o dos negros e o dos indígenas.

A imprensa não é imune às contradições. E desempenhou um papel na atual crise. Este papel também precisa ser iluminado. Não são só os partidos que precisam fazer autocrítica. Mas o jornalismo e, principalmente a reportagem, são imprescindíveis. Não há nenhuma narrativa que possa substituir a reportagem como documento sobre a história em movimento. E o que se espera de nós é que sejamos capazes de resistir e fazer reportagem no momento em que, por todas as razões, é mais difícil fazer reportagem.

Estou na Cúpula do Clima e não aqui para, junto com um grupo de jornalistas e com o Centro Pulitzer, lançar um fundo global para financiar reportagens de profundidade na Amazônia e fortalecer o jornalismo local feito desde a Amazônia. O Brasil e o planeta só pararão de queimar quando formos capazes de voltar a imaginar um futuro onde possamos viver. Queria terminar dizendo “muito obrigada”. E, o mais importante: Marielle Presente.”

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