Espere a primavera, minha menina
Durante mais um julgamento previsível da turma da toga, o refúgio na casa de papelão das bonecas
Os homens de toga decidem mais uma vez os destinos do país. A angústia - estreiteza, segundo o dicionário - é a de sempre, pelo menos desde 2014, quando o tucano Aécio Neves fez birra e não aceitou a derrota. A sessão do Tribunal Superior Eleitoral, julgamento da candidatura Lula, se arrasta, entre citações de Bhagavad Gita e lengalengas do juridiquês. Velhos cevados nos auxílios de luxúria e moradia enfiam os olhos nas telas dos notebooks Positivo em busca da jurisprudência da desculpa. Escondem seus rostos.
O caminhão do gás sobe a rua Havaí e toca “Por Elise”, de Beethoven. O planeta Melancolia ronda os altos do Sumaré, São Paulo, SP. O derradeiro dia de agosto de 2018 se espicha, parece não ter fim. O Brasil, cada vez menor, desconsidera a ONU, por fazer cumprir o roteiro do grande acordo nacional, “com Supremo com tudo”. Corta. A tela escurece.
“O barato é louco e o processo é lento”, o som & fúria dos Racionais MCs sobe a ladeira no carro do boy.
Angústia, estreiteza do tempo na caixa torácica, “vocês que perderam em 1964, 68...”, escuto a voz do jornalistão cínico que brincava com nossos passados nas redações. Nós que perdemos em 1989, nós que caímos no conto golpista do impeachment de Dilma Rousseff.
Os homens de toga seguem apenas o roteiro. Exerço meu direito de espernear, jus sperniandi, blasfemo, vocifero.
No que sinto aquela mãozinha puxando a calça de moleton da minha perna esquerda.
Não pede, ordena, “vem”, passa por cima de bonecas, quebra-cabeças de urso panda, pisa em uma feira de Caruaru de legos (“ai, ai, papai”), o livrinho barulhento da fazenda, a mochila mexicana do filme “Viva”, o gatinho japonês, dinossauros, massinhas, petecas, peixinhos do Santos, a zebrinha, o corvo Edgar, pinos do boliche do Pica Pau e do Big Lebowski...
Não pede, manda de novo: “Aqui, aqui”. Obedeço. Estamos dentro da sua casinha, uma empenada caixa de papelão. Lá nos esperavam o Charlie (irmão da Lola), o Júlio do Cocoricó –“chove, mas como chove”-, a boneca careca e sem pernas (sua preferida), a Maria Bonita do Recife Antigo, a Bela de “A Bela e a Fera”, o Patativa do Assaré de madeira, o incrível Hulk e o fantoche que o vovô trouxe da Finlândia, vixe, o fantoche é a cara do Sigmund Freud.
A casa tem duas janelas laterais e um buraco no teto para ver as estrelas. No que me faz cantar aquela do Roberto: “Tudo vai mal/
Tudo, tudo, tudo, tudo/Tudo mudou/Não me iludo e contudo/A mesma porta sem trinco/Mesmo teto, mesmo teto/E a mesma lua a furar/Nosso zinco”.
Ela entende até demais, falamos dos primeiros dias na Alecrim, a escolinha, e do luar do sertão na chapada do Araripe - nossa derradeira viagem.
A voz dos togados vai sumindo, sumindo... Onde havia estreiteza, faz-se a largura naquela casinha de meio metro quadrado.
A casa tomada. No que uma nuvem de cupins de lâmpada invade o apartamento. O papai e suas fantasias semiáridas sobre a chuva faz o anúncio profético: vai chover, podicrê, sinal de chuvarada. A pequena abraça o Júlio do Cocoricó. Os siriris, sararás ou aleluias, como também são conhecidos os insetos, chegam até nossa casinha. Pela janela lateral direita.
Há quem diga que os cupins alados trazem sinal de tragédia e estrago. A turma do tribunal e nenhum segredo: decisão tomada de véspera. Tudo dentro do roteiro. Apenas o juiz Fachin considerou o óbvio: vale a Constituição e a medida concreta da ONU. Esquece. 6 x 1 para eles.
“Pau-pau, papai”. A bebê viu borboletas onde víamos cupins. Ela chama borboletas de “pau-pau” por causa da música “borboletinha tá na cozinha” . Adora as músicas da Casa da Ruth, com a cantora Fortuna. Uma lindeza só.
Quem disse que quero mais sair dessa casinha de papelão da Irene, minha menina de um ano e sete meses neste 2 de setembro? Lá fora, os canalhas, os Palhares, julgam com empáfia de véspera. O velho roteiro televisivo e os obedientes de toga.
Que setembro nos traga, finalmente, a primavera, meu caro amigo Bandini.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Sertão Japão” (haikais, 2018) e do romance “Big Jato” (editora Companhia das Letras), entre outros livros.
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