Brasil é condenado por não investigar assassinato e tortura de Vladimir Herzog
Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Estado brasileiro apure, julgue e, se for o caso, puna os responsáveis pela morte do jornalista na ditadura militar
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou nesta quarta-feira o Estado brasileiro pela falta de investigação, julgamento e punição aos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog, ocorrido em 1975. O tribunal internacional também considerou o Estado como responsável pela violação ao direito à verdade e à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares de Herzog.
“A CIDH determinou que os fatos ocorridos contra Vladimir Herzog devem ser considerados como um crime de lesa-humanidade, conforme definido pelo direito internacional”, diz a sentença.
Em 24 de outubro de 1975, Vladimir Herzog, então com 38 anos, funcionário da TV Cultura de São Paulo, apresentou-se voluntariamente para depor às autoridades militares no DOI/CODI, em São Paulo.
Entretanto, foi privado de sua liberdade, interrogado, torturado e finalmente assassinado, em um contexto sistemático e generalizado de ataques contra a população civil considerada como “opositora” da ditadura brasileira, e em particular contra jornalistas e membros do Partido Comunista Brasileiro, segundo a ação.
As autoridades brasileiras da época informaram que se tratou de um suicídio, uma versão comprovada como falsa pela família do jornalista e na própria ação que tramitou na CIDH. Posteriormente, em 1992, as autoridades iniciaram uma nova investigação, que no entanto foi arquivada devido à Lei de Anistia.
Os familiares moveram em 1976 uma ação civil na Justiça Federal que desmentiu a versão do suicídio, e em 1992 o Ministério Público paulista pediu a abertura de um inquérito policial, mas o Tribunal de Justiça do Estado considerou que a Lei de Anistia impedia a investigação.
Depois de outra tentativa de esclarecer os fatos, em 2008, o caso foi arquivado por prescrição, segundo a ação.
Ao ser classificado como um crime contra a humanidade, o Tribunal concluiu que o Estado “não podia invocar nem a existência da figura da prescrição, nem a aplicação do princípio ‘ne bis in idem’, da Lei de Anistia ou de qualquer outra disposição análoga ou excludente similar de responsabilidade, para isentar-se de seu dever de investigar e punir os responsáveis”.
A Corte Interamericana concluiu que, devido à falta de investigação, o Estado brasileiro também violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial dos familiares da vítima, identificados como Zora, Clarice, André e Ivo Herzog. Em nota, o Instituto Vladimir Herzog celebrou a sentença e afirmou que "cabe à sociedade civil cobrar com urgência do Supremo Tribunal Federal (STF) a reinterpretação da Lei de Anistia, confirmando a decisão da Corte de que não é aceitável a impunidade a torturadores e assassinos a serviço do Estado". A entidade disse, ainda, que continua sua luta por Justiça e que esse processo "imprescindível para que possamos virar esta página sombria de nossa história, que continua a se repetir nas mortes e torturas ainda hoje praticadas por agentes do Estado" .
Como parte do procedimento perante a Corte, o Brasil reconheceu que a conduta estatal da prisão arbitrária, tortura e morte de Vladimir Herzog tinha causado severa dor aos familiares, reconhecendo sua responsabilidade.
“Apesar de o Brasil ter empreendido diversos esforços para satisfazer o direito à verdade da família do senhor Herzog e da sociedade em geral, a falta de um esclarecimento judicial, a ausência de sanções individuais (...) violou o direito a conhecer a verdade, em prejuízo de Zora, Clarice, André e Ivo Herzog”, diz a sentença.
O Tribunal ordenou ao Estado brasileiro que reinicie, com a devida diligência, a investigação e o processo penal correspondente àqueles fatos, para identificar, processar e, se for o caso, punir os responsáveis pela tortura e assassinato de Herzog.
Além disso, o Brasil deverá adotar as medidas mais idôneas conforme as suas instituições para que se reconheça o caráter imprescritível dos crimes contra a humanidade e crimes internacionais, assim como arcar com os danos materiais, imateriais e custas judiciais e advocatícias.
A CIDH, com sede na Costa Rica, é parte da Organização dos Estados Americanos (OEA), e suas resoluções são de acatamento obrigatório para os países do hemisfério que reconheceram sua jurisprudência.
Esta é a segunda decisão do órgão que condena o país pela falta de investigação dos crimes cometidos pela ditadura militar. Em 2011, a Corte também ordenou o país a processar os acusados pelos assassinatos cometidos no combate à guerrilha do Araguaia, quando desapareceram 62 pessoas. Isso não foi feito, entretanto, conforme apontou a subprocuradora-geral da República, Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, em uma entrevista ao EL PAÍS, em março. "A decisão da CIDH [sobre o Araguaia] marca uma inflexão. O Supremo vai ter que enfrentar essa questão. Quando o tema é a ditadura, o Supremo não aceita a soberania da CIDH, mas em outros casos sim: na Lei Maria da Penha, na condenação do trabalho escravo, por exemplo", disse na ocasião.
Em 7 de fevereiro deste ano, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu ao Supremo Tribunal Federal, que reformou, em 2010, a Lei da Anistia, que "reflita" sobre a decisão da Corte sobre a condenação no caso da guerrilha. Ela também pediu para que o tribunal reabra o caso do ex-deputado Rubens Paiva, morto pela ditadura em 1971, o que poderia servir de precedente para outros casos.
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