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Coluna
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Brasil a lenha

Em nome de uma certa modernidade suspeita, a direita golpista devolveu o país ao primitivismo

Taí uma coisa que devo agradecer à turma do golpe: o Brasil está de volta ao fogão a lenha. Benvindos ao mundo primitivo. Obrigado Temer e aliados de todos os poderes, inclusive do meu, o tal quarto poder da imprensa.

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Tudo bem, amigo da outra margem do rio ideológico, posso chamar aquela presepada do Congresso de impeachment em vez de golpe, desde que você acompanhe esta minha crônica piromaníaca. Acenda a primeira tocha aquele que nunca apelou por leitores.

Tenho um amor ancestral por um fogão a lenha. Nasci e me criei no Cariri sob o fogo de cipós de marmeleiro e troncos de aroeira, ainda hoje conjugo o verbo crepitar nos meus sonhos paleolíticos. Como era lindo. Vou para a casa da família da minha mulher em Gonçalves, Minas, e volto, imaginariamente, à beira do fogão de vó Merandolina Freire de Lima, índia de Águas Belas (PE), a sábia que me ensinou a diferença entre o cru e o cozido muito antes do pagode uspiano do gênio Claude Levi Strauss. O Brasil movido a lenha, a rentismo e a faroeste de primeira instância jurídica é o que há de mais moderno. Benvindos ao medievo brasuca.

Epa, chega de romantismo folclórico urbanoide babaca. Parece que minha tia Neuzinha me dá a primeira bronca: “Botijão de gás a cem reais é o inferno para alimentar tantas bocas, catei lenha por uma vida, mesmo nesse deserto onde não tem mais nem cipó de nada. E aquele mingau para um neto que chora fora de hora?”. Totonho Marcelino, caboclo roceiro, meu camarada de infância na mesma freguesia caririense do Sítio das Cobras, entorna o caldo: “Acho que a gente aqui das brenhas, do mato, não merecia o que teve direito nos últimos tempos. Voltamos a ser aqueles que nem merecem um fogãozinho de botijão, como foi a vida inteira, voltamos a ser os esquecidos”.

O amor pelo fogão a lenha não encontra amparo entre os meus. Entendo. E olhe que eles nunca leram o sempre necessário doutor Drauzio Varella: “A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o fogão a lenha o fator ambiental responsável pelo maior número de mortes, no mundo inteiro. Morre mais gente como consequência desse tipo de poluição doméstica do que de malária (causadora de 800 mil mortes/ano). Mulheres e crianças que vivem em pobreza extrema correm risco mais alto, porque ficam mais expostas – os homens tendem a passar menos tempo em casa”. Poxa, doutor Drauzio, aí já matou meu romantismo por aquele fogão lenhoso que usufruo como luxo, vez por outra, não no dia-a-dia das precisões. Sim, tia Neuzinha, esse sobrinho camarada se aburguesou nos modos & modinhas das capitais.

A política internacional de preços, blábláblá, explica a diretoria da novíssima Petrobrás, vendida até o talo das sondas do pré-sal aos gringos do pós-golpe, lascou seu amigo Totonho e todos os seus parentes do Ceará e de Pernambuco, se conforme. Só me resta, tia Neuzinha, meu amor ancestral pelo fogo a lenha. A política internacional de preços nos lasca mais que maxixe em cruz. Ainda bem que parei de acompanhar a geopolítica do petróleo desde a Guerra do Golfo, ufa!

Ainda bem que acreditei no que os colunistas de economia dos jornais e tevês brasileiros me venderam sobre a vida pós-Dilma, é só tirar a “vaca” -sobe o coro dos playboys na abertura da Copa em Itaquera. O economista Marcio Pochmann, no entanto, tenta me convencer ao contrário, um maluco: “Com a Ponte para o futuro do neoliberalismo, 1,2 milhão de famílias abandonaram o gás de cozinha em 2017 e tiveram que apelar para o uso do carvão e lenha. Última vez que isso havia acontecido em maior proporção foi em 2002, no governo FHC.”

E eu achando que o golpe, desculpa, amigo(a), o impeachment, tinha devolvido pelo menos uma coisa incrível, o fogão a lenha. Nem isso. Tentarei não ficar triste com o que fizeram com este país. Tem fogo?

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de O livro das mulheres extraordinárias (editora Três Estrelas).

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