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Presidente de Portugal: “É preciso cultivar o diálogo na política”

Marcelo Rebelo de Sousa conta como o país saiu de uma de suas maiores crises financeiras

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Professor constitucionalista, ministro, líder do Partido Social-Democrata, jornalista, conselheiro do Museu de Arte Antiga, católico, casado e separado, pai de dois filhos e avô de cinco netos, tudo isso e muito mais é "o Professor", Marcelo Rebelo de Souza (Lisboa, 1948), o presidente de Portugal, que obteve uma popularidade recorde de 88%.

Pergunta. Em março de 2015 o senhor chegou ao cargo com o voto da maioria absoluta dos eleitores. Dois anos em que aconteceu quase tudo em Portugal, do desastre bancário a presidir a ONU e o Eurogrupo [países que têm o euro como moeda]. Qual é seu balanço?

Resposta. Quando iniciei meu mandato a situação do país era difícil. Existia uma grande divisão na vida política portuguesa, com um debate sobre a legitimidade do Governo. O centro-direita considerava que tinha direito a governar porque havia vencido as eleições e a esquerda também porque tinham maioria parlamentar. Nesse ambiente muito perturbado, eu me perguntava sobre a continuidade do Governo, sobre a relação com Bruxelas e a reação dos mercados. Foram meses muito tensos. Olhando para trás, preciso dizer que dois anos depois o balanço é positivo: há estabilidade social e política, o mandato será cumprido, há uma estabilização progressiva do sistema bancário e ganhamos a credibilidade dos mercados financeiros.

P. Também ocorreram os incêndios mais trágicos da história.

R. De fato tivemos os incêndios de junho e outubro, um fracasso das instituições do país; também ainda existem desigualdades sociais entre os vários Portugais, mas foram atingidos objetivos globais importantes.

P. O senhor é um político do PSD que chega à presidência e se depara com um Governo socialista minoritário, apoiado pelo Bloco de Esquerda e o Partido Comunista. Como essa coabitação é possível?

R. O presidente não é uma personalidade partidarista; não pode estabelecer relações em função do tipo de Governo. Não posso me transformar em oposição dos governos nem em oposição da oposição.

P. Um de seus poderes é vetar leis. Já vetou sete. Não cria um mal-estar com os partidos e o Governo?

R. Faço tudo o que posso para evitá-lo. Não veto por uma opinião e oposição pessoal, mas porque entendo que minha razão corresponde a um senso coletivo generalizado.

P. O senhor vetou nada menos do que a lei de financiamento dos partidos (isenção do Imposto sobre Valor Agregado – IVA – e fim do limite às contribuições privadas).

R. Minha posição pessoal era totalmente contrária. Sou favorável a que, essencialmente, o financiamento dos partidos seja público, mas não vetei a lei por isso, mas porque não existiu o menor debate público que permitisse aos portugueses conhecerem as razões dessas mudanças. Quando voltou ao Parlamento e um dos pontos foi retificado, eu continuava contrário, mas já havia ocorrido um debate público e a assinei.

P. Também vetou a lei sobre maternidade assistida e alguns lembraram sua condição de católico.

R. Nesse caso, observei ao Parlamento que a lei não havia levado em consideração nenhuma das preocupações do Conselho Nacional de Ética. Os deputados incorporaram algumas delas, não todas, mas muitas relevantes e a assinei.

P. Sua popularidade está em 88%. O senhor é chamado de o presidente dos afetos.

O presidente de Portugal, em um momento da entrevista com EL PAÍS.
O presidente de Portugal, em um momento da entrevista com EL PAÍS.João Henriques

R. A política é feita com pessoas. A relação pessoal pode facilitar a política e para isso é preciso falar. Ao chegar, adotei o sistema de receber a cada dois meses partidos, sindicatos e patronais. Assim conheço o que eles pensam e eles conhecem o que eu penso. Sem tensão, em privado e sem períodos de crise. O diálogo constante acaba ajudando a melhorar o clima político. É preciso cultivar o diálogo.

P. A Europa está deixando que a China ocupe comercialmente a África e até a América Ibérica.

R. A Europa não pode se esquecer desses continentes, onde a Espanha e Portugal têm um conhecimento que outros países europeus não têm. Não é somente a língua e a cultura, são as relações humanas durante séculos. É preciso que a Europa antecipe as evoluções e aí nós, espanhóis e portugueses, temos muito a dizer. Costumo dizer que a parte com mais futuro de minha família, meus netos, está no Brasil. Antes era outro mundo, agora é o nosso. Todos os dias recebo notícias do Brasil como da Espanha, Portugal e outros países europeus. O que acontece no Brasil é como se acontecesse comigo; os americanos do norte não têm essa sensibilidade, mesmo sendo vizinhos.

P. Por que os ultranacionalismos ressurgem na Europa?

R. A Europa esteve por muito tempo em compasso de espera. É um dos riscos que precisamos encarar. Perdemos muito tempo em matéria de união monetária e bancária, em emprego, migrações e no fortalecimento da posição da Europa no mundo. Existe uma verdade básica: se há um vazio no espaço político e quem deve ocupá-lo não o faz, outro o ocupará. A indefinição europeia foi aproveitada pelos críticos à União Europeia. Não pode existir uma política europeia forte com sistemas políticos fracos de Estados membros. Em muitos casos os sistemas que temos não acompanham a evolução dos novos tempos.

P. Por enquanto, os que querem evitar uma Europa forte e unida parecem estar melhor organizados.

R. O contexto mundial não é fácil. Corremos o risco de voltar à Guerra Fria, com mais protagonistas em conflito e sem canais de comunicação. Na Guerra Fria anterior existiam regras e os canais informais entre os hemisférios permaneciam abertos. É preciso criá-los porque se cairmos em uma nova Guerra Fria não há nada pior do que a falta de comunicação. Isso significa que cada um não compreende o outro e nesse cenário um erro de percepção leva a um erro de ação, à precipitação. É preciso recriar canais de diálogo, é essencial.

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