Sagat, o ex-traficante que conta no Youtube “por que o crime não compensa”
Com duas balas no corpo e após viver 12 anos na cadeia, Fábio da Hora luta agora para que outros deixem a bandidagem. “A droga mais vendida nas bocas de fumo é a ilusão de uma vida melhor”, diz
Fabio da Hora Serra tem duas balas alojadas em seu corpo, uma no antebraço esquerdo e outra no ombro esquerdo. Ele viveu boa parte da sua vida fora da lei: foi traficante de drogas, esteve envolvido tanto com o Comando Vermelho quanto com o PCC, participou de assaltos... Dos seus 39 anos, viveu 12 na prisão, em três momentos diferentes. Mas desde que deixou a cadeia pela última vez, em 2015, investiu suas energias no projeto de nunca mais voltar para lá. "A droga mais vendida nas bocas de fumo é a ilusão de uma vida melhor", diz ele, com propriedade. Foi fugindo do que parecia um destino previsível que Fabio tornou-se barbeiro profissional. Abriu seu próprio salão, conquistou uma clientela cativa, comprou um carro, conheceu sua atual namorada, Neusa... Ele sabe que não é o desfecho comum de quem passou por essa vida paralela. Por isso, precisava mostrar para o mundo que sua vida deu uma guinada. Foi assim que Sagat, como é conhecido, teve a ideia de criar um canal no Youtube e publicar uma série de vídeos seus e de outros ex-criminosos. Todos eles levam uma ideia básica no título: a de que o crime não compensa.
— Por que não?
— Porque eu ainda não vi vitória. Alguém até pode ter muito dinheiro, mas olha para a família dele, para os filhos dele... Sempre tem algo que ficou para trás. Se um entre mil se saiu bem, é exceção, não a regra.
Em um vídeo gravado dentro da sua barbearia, aos pés da favela da Mangueira, Zona Norte do Rio de Janeiro, Sagat apresenta Tiago Romão. Ele é um ex-traficante que, hoje, trabalha com manutenção de aparatos de cozinha e canta em sua banda de hip hop, FARC MC'S. "São fatos reais, história verídica. Então, se liga, o crime não compensa. Você que não entrou, o crime não compensa. Você que tá dentro, o crime não compensa", anuncia Sagat. Corta para Romão, que aparece em cima de uma laje. Com um copo e um cigarro na mão, começa: "O crime é visto como uma coisa maravilhosa. Os caras com armas, malote, cordão de ouro, as melhores roupas, tênis caro, as melhores mulheres... Em dia de baile funk, você vê todas essas combinações". conta. E continua: "Tem pessoas que falam que o crime é dinheiro fácil. Não, o dinheiro do crime é rápido. Porque não é fácil, tá ligado?". Descreve então uma série de situações que apenas uma pessoa que se envolveu com o tráfico poderia contar.
A ideia de gravar os vídeos, reunidos no canal Contos de um barbeiro, surgiu da vontade de mostrar para aqueles que estão no mundo do crime, ou entrando nele, que existe um outro caminho a seguir. Mas também a de convencer a sociedade que "uma pessoa tem recuperação, para mudar essa mentalidade de que um ex-presidiário é perigoso de ser contratado". Isso acaba empurrando muita gente "que está com pensamento bom, de mudança, de volta para o crime", explica Sagat. "O ditado 'a ocasião faz o ladrão' não é mentira. Imagina que você é um pai de família, mas não tem como pagar um aluguel e seus filhos não tem o que comer direito. E qual a oportunidade que você tem?", questiona. "Eu estava totalmente preparado para viver em sociedade, minha mente estava limpa. Mas se eu não tenho essa oportunidade de ser barbeiro, esse dia a dia trabalhando, só Deus sabe o que poderia ter acontecido".
Para ele, a violência e a criminalidade vêm piorando porque a sociedade vira as costas para as favelas. "Outro dia, uma delegada falou na TV que a população tinha que escolher um lado. Isso é muito forte. Que lado? Não tem lado! Todo mundo é brasileiro, é carioca. Enquanto as partes não se ajudarem, isso vai continuar e piorar", argumenta. Ele também se mostra cético com relação às recentes abordagens para tratar do problema, como a intervenção federal decretada pelo Governo Temer, e acredita que a legalização de algumas drogas, como a maconha, ajudaria a tirar o poder das mãos dos traficantes. "Quando vieram com as UPPs, eles achavam que bandido ia sentar e falar 'caralho, a polícia tá na favela, vou caçar uma batalha e parar de ser bandido'? Não vai. Ele vai se adaptar, diversificar seu negócio ou buscar outra maneira de ganhar dinheiro".
A percepção do policial e do traficante
Os vídeos de Sagat não passam desapercebidos. A., um policial militar que atua na favela da Mangueira — mas que diz estar falando com o EL PAÍS "como um cidadão" — , elogia o esforço em "falar para outras pessoas que aquilo é ruim". Para ele, acompanhar o relato "de alguém inteligente, um cara articulado, que mudou de vida e evoluiu como ser humano", mostra que "uma transformação é possível". Se uma ou duas pessoas são atingidas e mudam de vida, "então já valeu a pena", afirma. Ele mesmo, que costuma cortar o cabelo no salão de Sagat, se identifica com sua história. "Quando eu estava no orfanato, queria fugir. Poderia ter virado um menino de rua, mas meu pai [adotivo] me deu uma oportunidade e optei pelo certo. Escolhi ser policial esperando fazer o melhor para a sociedade, tanto dentro como fora da corporação", explica.
O preconceito é também algo que une este policial ao ex-traficante. Como PM, ele precisa lidar com a desconfiança daqueles que acreditam que todo agente da corporação é corrupto e violento. "Quando fiquei sabendo sobre sua passagem pelo crime, continuei a frequentar seu salão de forma natural. E eu queria também que as pessoas pudessem tratar o policial de maneira natural. É um fardo pesado. Sempre tem alguém com uma tabela julgando", explica. "Tento não ter preconceito com ninguém. Sempre gostei de estar próximo das pessoas que vivem nas comunidades. Não podemos achar que alguém é bandido só porque mora em comunidade, assim como não podemos achar que um policial é corrupto por ser policial. A maioria dos meus colegas é honesta", garante.
W., um traficante de 30 anos da Baixada Fluminense, também se identifica com Sagat. Ele está no tráfico desde os 11 anos devido à perda de um amigo de infância durante uma guerra entre facções. "Entrei no tráfico para me vingar. Mas não me vinguei de ninguém, e aqueles que a gente queria vingança já nem estão mais vivos, morreram em outro lugar. Mas eu sigo aqui", conta.
— O crime compensa?
— Tudo passou na vida e hoje vejo que não compensa. Mas e aí, como é que você vai viver agora, se na infância você plantou o crime? Como é que você vai mudar de vida? Tem que mudar de cidade, mas lá também tem crime. Tem que entrar na Igreja, buscar o caminho de Deus.
— Os vídeos do Sagat te fizeram refletir?
— O cara está trabalhando, está conquistando muita coisa. No crime, hoje você tem tudo, mas amanhã não tem nada. Se você está trabalhando, hoje você tem e amanhã também. A maioria dos meus amigos é trabalhador, vejo a evolução deles. O que eu evolui? O que eu conquistei? Conquistei uma boca de fumo, isso aí é o que tenho. Eles conquistaram casa, filhos, carteira assinada, televisão, geladeira... A casa deles é bonita, do jeito que eles querem.
— Você deixaria tudo para viver como uma pessoa comum?
— Minha vontade um dia é de fazer isso, mas hoje eu me sentiria um covarde. Hoje em dia é o poder, o fuzil, que atrai. Nem é tanto o dinheiro.
O EL PAÍS recebeu a notícia neste domingo, 1 de abril, de que W. fora baleado no peito em uma troca de tiros com milicianos da Baixada Fluminense no dia anterior. Ele passou por uma cirurgia e se encontra em estado grave no hospital.
Uma vida cheia de reviravoltas
Sagat é um homem negro, alto e de corpo atlético. Possui cavanhaque, cabelo curto e espichado para cima, dentes centrais separados e um grande relógio dourado no pulso direito. Sentado no sofá de sua barbearia, conta ser uma exceção dentro de um sistema prisional dominado por facções, com uma população carcerária de mais de 700.000 pessoas, a terceira maior do mundo, e que não preza pela ressocialização do preso. "Imagina que, por acidente, atropelei e matei uma pessoa. Quando eu chegar na delegacia, vão me perguntar: 'Tu quer tirar cadeia aonde?'. Tem o Comando Vermelho, o ADA, o Terceiro Comando, a milícia, o seguro (onde estão estupradores, pedófilos, ex-policiais, milicianos)... Não tenho a opção de um local onde eu possa ficar tranquilo. O que vou me tornar, o que vou aprender ali dentro, o que vou ouvir?", questiona ele. "O ser humano é fruto do meio. Se ele está naquele meio, ele vai sair um criminoso, uma pessoa pior".
Foi o que aconteceu com ele na primeira vez em que esteve na cadeia, ainda no início dos anos 2000. Não fazia muito tempo que estava envolvido com o tráfico, ao qual se juntara para sustentar seu vício em cocaína e uma filha pequena. Nascido e criado em Queimados, na Baixada Fluminense, deixara de estudar aos 14 anos para trabalhar e poder comprar aquelas coisas que sua mãe, nessa época caixa de supermercado, não tinha condições de lhe dar. "Com 18 anos, já estava casado, tinha uma filha e trabalhava como pintor, com carteira assinada e tudo, em um hotel. Mas em uma balada conheci a droga e chegou uma hora que meu dinheiro não dava para nada. Perdia dia de trabalho e fui demitido. Aí a bola de neve começou a se formar", recorda. Foi preso por assalto e associação ao tráfico e condenado a seis anos e dois meses. Por ser réu primário, ganhou sua condicional após dois anos, em 2003. "Saí com minha mente toda virada. Um pouquinho de cidadania que eu tinha foi para o esgoto. Conheci muita gente lá dentro e o espírito faccioso entrou na minha mente. Passei a ter pensamentos que eu não tinha antes, como a ambição de ser o dono de uma boca de fumo. Antes, eu era apenas um soldado fazendo a contenção, mas saí querendo botar para foder", conta.
Após um ano e dois meses na rua, voltou a ser preso em um assalto e viu sua pena aumentar ainda mais. Durante os seis anos seguintes em que esteve na cadeia, sua mente "começou a mudar, a ter pensamentos de querer parar com tudo". Resolveu se dedicar a atividades que "não estivessem relacionadas com o crime", como fazer aula de música, aprender a tocar violão e compor. Outro presidiário viu seu potencial e prometeu arranjar contatos em São Paulo, "onde o funk ainda estava começando a estourar". Após recuperar sua liberdade, em 2009, abraçou a empreitada.
O período de dois anos que precedeu sua terceira ida para a cadeia foi bastante movimentado. Morando na casa de um DJ em Osasco, iniciou sua carreira artística e começou a cantar proibidões em favelas. "Os caras do PCC", conta, "davam a maior moral do mundo". Mas o sucesso não foi repentino e o dinheiro nem sempre chegava como eu queria. "Os bandidos de São Paulo não são iguais aos do Rio, que ficam presos na favela dormindo no sereno. Eles curtem coisa de primeira. Pagam pelo camarote da melhor boate, gastam 2.000 reais em champagne, dormem nos melhores hotéis. Conheci um outro tipo de crime e isso acabou me seduzindo outra vez", conta ele. "Se eu fazia um show e ganhava 2.000 reais, eu saía com os caras e, como não deixava que pagassem tudo para mim, no dia seguinte já estava zerado. Como não tinha essa fama toda, comecei a passar dificuldade".
Um chefe do tráfico resolveu lhe ajudar dando 200 gramas de cocaína para que ele levasse para o Rio e, com a venda, conseguisse uns 3.000 reais para poder gravar uma música. Já havia entregado a droga e aguardava o dinheiro quando foi abordado por policiais e levou três tiros. "Já não consigo tocar violão, minha mão atrofiou e não consigo fazer as notas. Foi algo que feriu muito a minha alma", conta. Quando ainda estava no hospital aguardando por uma cirurgia, foi resgatado por seus amigos do PCC e retornou para São Paulo, mergulhando mais uma vez no mundo do crime. "Já não queria mais saber de cantar, já não conseguia mais tocar, então disse para o cara me ajudar me dando um emprego na firma dele. Ele resistiu, disse que eu era artista e que meu trabalho era maneiro. Mas eu insisti e me deram uma gerência pra tomar conta", explica.
Meses depois, no início de 2011, quando passava uma temporada no Rio com sua família, decidiu participar de um grande assalto. Durante a perseguição policial, caiu da moto em que estava e acabou preso pela terceira vez. Uma vez algemado, colocou em sua cabeça que, independente do que acontecesse, sua vida teria que mudar. Ao chegar na prisão, pediu para ficar em uma ala mais tranquila, se agarrou à Igreja, às atividades e projetos que surgiam e ao trabalho cortando cabelo dos presos. "Mas eu não sai uma pessoa melhor pelas coisas que eu passei na cadeia. Foram as coisas que eu sofri no crime aqui fora, o massacre psicológico de muitas vezes querer fazer alguma coisa e não poder devido à responsabilidade que tinha na mão. O medo de me matarem, de que me mandassem fazer uma coisa que você não queria fazer, do policial que me conhecia e estava atrás de mim..."
Começou a ganhar o benefício de sair aos fins de semana e ganhou sua liberdade de volta, ainda que portando uma tornozeleira eletrônica, em 2015. Na semana seguinte, juntou-se a outro ex-presidiário que havia acabado de abrir uma barbearia na Pavuna. Investiu na profissão conforme conquistava clientela e via que poderia sustentar sua filha. A relação com sua família também havia se recuperado. Um desembargador assinou seu indulto. Sem dívidas com Justiça, se mudou para a favela da Mangueira, abriu a barbearia e foi morar com sua namorada. Todo o resto ficara para trás.
Agora voltou a compor e arrisca seus primeiros passos como rapper. Recentemente gravou uma música em homenagem a Marielle Franco e Anderson Gomes (ouça abaixo). Também escreveu a seguinte letra: "Microfone é a arma pra quem sabe usar / A caneta é munição pra quem não quer atirar / Atitude, raciocínio pra quem quer guerrear / Nosso rap é o exército de loucos / O hip hop tá na guerra, vem com a tropa rimar / Rimar / Rimar...".