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Coluna
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O simbolismo de minhas duas amigas secretas

Apesar de tudo, os brasileiros revelaram, não sei até que ponto conscientemente ou inconscientemente, seu desejo de felicidade e abraço

RAFAEL MARCHANTE (Reuters)
Juan Arias
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O Natal passou, e 2017 está quase acabando. Em breve estaremos navegando pelo ano novo. Contra todos os prognósticos, como sempre, nesses dias, em vez de ter ressoado a canção da infelicidade por tudo o que o Brasil enfrentou de horror este ano, a palavra que mais ressoou no Brasil, segundo o Google, foi "feliz". As redes sociais ficaram sobrecarregadas com os votos de felicidades trocados entre os internautas. Pessoas de todas as crenças participaram desse banquete. Eu mesmo recebi votos de felicidade de católicos, evangélicos, espíritas, judeus e até de agnósticos e ateus. "Foi uma overdose de Natal", disse minha esposa Roseana, brasileira, acrescentando: "Esse fenômeno deveria ser analisado", referindo-se ao fato de que, pelo contrário, foi um ano de desencanto.

O batalhador e agnóstico Fernando Gabeira, em sua coluna "Natal nos Trópicos", no jornal O Globo, escreveu: "Um Natal feliz ajuda. O encontro familiar sempre acende a ideia da continuidade [... ]”. E, “transplantado para a dimensão nacional, esse sentimento é um bom combustível para rodar o delicado ano de 2018 e, quem sabe, emergir das cinzas de um período que se esgotou", que é como dizer que o Brasil pode ressurgir outro e melhor.

Este desejo oculto extra de felicidade que, segundo as estatísticas, foi notado de um modo particular no Brasil neste Natal, surpreendeu a tal ponto que mesmo pessoas bem conscientes do momento perigoso e doloroso que este país está vivendo chegaram a pedir desculpas por desejar "Feliz Natal" aos amigos. Isso foi expressado, por exemplo, com uma frase feliz da poeta Suzana Vargas, que escreveu no Facebook: "Apesar de tudo, Feliz Natal". Sim, apesar de tudo, os brasileiros revelaram, não sei até que ponto conscientemente ou inconscientemente, seu desejo de felicidade e abraço, como esse real e simbólico ao mesmo tempo que, aparentemente, está programado em Copacabana para se despedir do feroz 2017.

Talvez, como reminiscência dos meus estudos clássicos, sempre fui um apaixonado pelos símbolos, uma das figuras mais fortes de nosso pensamento. Refletindo sobre isso, saí muito cedo esta manhã, 26, dia do pós-Natal, para caminhar e subir à linda capela de Saquarema, datada de 1630 e ainda inacabada. De lá, é possível observar um dos panoramas mais impressionantes já vistos por mim em meus milhares de quilômetros de viagens ao redor do mundo. Na rua, não há uma alma viva. Um deserto. Em todo meu passeio, tive apenas três encontros, acredito que simbólicos, do que aconteceu neste Natal. O primeiro foi um personagem que chamam de "o louquinho". Parece um Dom Quixote reencarnado, só que sem armadura ou sabre. Está sempre sem camisa e com uma bermuda, faça chuva ou faça sol. Caminha falando sem parar e brandindo seus longos braços. Às vezes, infunde um certo temor porque parece com raiva do mundo. Esta manhã, não. Não entendi o que dizia em voz alta, mas pude observar que eram palavras de alegria. Parecia feliz. Talvez porque vestisse uma bermuda nova, azul, com linhas brancas, que alguém deve ter lhe presenteado na véspera de Natal. Até ele parecia, por um momento, feliz e de bom humor.

Meu segundo encontro foi com o que chamarei de minhas duas "amigas secretas". Foram meus melhores presentes de Natal. Eu as conheci assim que cheguei a esta pequena cidade na região dos Lagos, justamente ao subir pela primeira vez à Igreja. Existem há cinco milhões de anos e sempre, desde a antiguidade, foram vistas como bruxas e misteriosas, os animais mais inteligentes da noite, que além disso possuem o raro dom de um raio de visão, sem mover a cabeça, de quase 360 graus.

Havia anos que não encontrava minhas duas pequenas corujas, das quais me tornei tão amigo que havia conseguido chegar muito perto delas, apesar de serem tão desconfiadas, e pude tocar sua plumagem com a ponta de meus dedos. E pude vê-las tão de perto que percebi que têm a cara em forma de coração. Esta manhã, voltei a me aproximar delas. Nós nos olhamos fixamente. Senti que quiseram me esperar para também me contar, os temidos animais da escuridão, que não há noite que não seja seguida de um amanhecer, algo parecido com o que Gabeira escreveu há alguns dias, com o simbolismo de um país que deve surgir novo de suas cinzas já mortas.

Era tão cedo que a Igreja ainda estava fechada. A única presença eram minhas duas velhas amigas corujas. Meu amigo de bate-papo ainda não havia chegado, o guardião da capela, talvez o homem mais pessimista do planeta e de uma grande ternura interior. Eu o encontrei quando estava voltando da Igreja. Estava chegando. E me preparei para receber um Infeliz Natal. Me enganei. Para minha surpresa, me disse: "Vamos conseguir, vamos salvar nosso Brasil". E me explicou que seu motivo de esperança era que, no Rio, "aqueles que acreditaram, por tantos anos, serem donos de nossas vidas" passaram o Natal na prisão. E acrescentou: "Não é muito. Algum Gilmar Mendes irá soltá-los, mas ninguém tira nossa alegria de vê-los presos no Natal, enquanto suas vítimas desfrutavam felizes da liberdade". Juro que foram palavras textuais do meu amigo pessimista e com poucos estudos.

A mensagem cristã do Natal fala de "paz na Terra aos homens de boa vontade". E esses milhões de homens em busca da paz e felicidade continuam vivos e esperando algo melhor. Não é pouco. Ou estou errado? Então, para mais um clique do Google, Feliz Fim de Ano!, e também já Feliz 2018!, quando voltarei a aparecer nesta coluna. E meu abraço a todos, esse abraço do qual tantos, como disse o querido Gabeira, começam a sentir necessidade e saudade.

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