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“Tínhamos bebido algumas garrafas e de repente, Chico Buarque se levanta e vai buscar o violão”

O músico português Antônio Zambujo volta ao Brasil para shows com repertório de Chico Buarque e lembra a relação com ele

Antônio Zambujo não tem dupla identidade, mas muda de nome quando atravessa o oceano. Incorporado com sucesso por aqui, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa enfrenta forte rejeição em Portugal. Lá, a maioria esmagadora dos jornalistas ignora as novas regras e, por isso, nosso personagem continua a ser o António, com acento agudo. Apesar de seu nome evidenciar a distância entre os dois universos linguísticos, o cantor é precisamente artífice do intercâmbio cultural entre os dois países. Ele está no Brasil para apresentar pela segunda vez seu último disco, Até pensei que fosse minha, inteiramente dedicado a canções de Chico Buarque. Indicado (mas não vencedor) ao Grammy Latino, o trabalho é o ápice de um profundo mergulho na música brasileira.

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Embora tenha acompanhado de perto as gravações do disco em sua homenagem, só agora Chico assistirá ao show com o seu repertório. Já disse ao amigo que irá ao Circo Voador, no Rio, onde Zambujo, de 42 anos, se apresenta com banda neste sábado. Ano passado, quando o português trouxe o concerto pela primeira vez ao Brasil, Chico passava uma temporada em Paris, saturado dos constantes ataques por suas escolhas políticas. Curiosamente, foi na capital francesa que a reportagem conversou com Zambujo sobre suas influências brasileiras.

Diferentemente de Chico, que mantém apartamento na cidade, o cantor português não tem uma lista de locais preferidos. Recebeu-nos no teatro onde se apresentaria e ao longo da entrevista, o artista sereno e de riso fácil teve um único momento de exaltação, quando lembrou a ocasião em que Chico foi xingado por um grupo de jovens ao sair de um restaurante no Rio, em dezembro de 2015. “Uma estupidez!”, desabafa. “O mundo está assustadoramente superficial. É fundamental valorizar pessoas com caráter, que têm capacidade de defender seus ideais, concorde-se ou não com o Chico”. Depois, se disse espantado com a situação no Brasil mais de uma vez.

“Na música cantada em português, o Chico talvez seja um dos mais importantes da história"

Zambujo sentiu na pele. Quando interpretou Cálice, teve de lidar com reações exaltadas do público, à esquerda e à direita. “Essas coisas são previsíveis. Estou lá em cima do palco para defender as canções, se for preciso”, explica o cantor. Ele não tem marcas de engajamento político em sua obra mas não teme herdar os ataques direcionados a Chico. “O que está a acontecer no Brasil é uma vergonha muito grande. De fora, fico com a sensação de que nunca mais vai terminar. Era importante que tudo se organizasse e o Estado social fosse justo, o que não é”, comenta.

O contato com Chico Buarque começou à distância, graças ao empresário de Zambujo, João Mário Linhares, dono da renomada produtora Muito prazer, Brasil. “Sempre que fazíamos um jantar, que bebíamos qualquer coisa, o João Mário ligava para o Chico e nós falávamos com ele, já todos bêbados, a mandar abraços”. Dessas “jantaradas”, como se diz em Portugal, surgiu a ideia do disco. “Na música cantada em português, o Chico talvez seja um dos mais importantes da história. Ele escreve tão bem que chega a dar raiva”, opina.

No entanto, não foi a música de Chico que chamou a atenção de Zambujo para o Brasil, há mais de quinze anos. À época um fadista tradicional, o que o fisgou foi João Gilberto e seu tardio João voz e violão (2000). Daí em diante, deu uma guinada mais do que natural, a contar pelas trajetórias de ícones da MPB que também se apaixonaram pelos acordes do pioneiro da Bossa Nova, como o jovem Buarque de Hollanda.

Em entrevista para o seu Songbook, Chico conta ao organizador Almir Chediak que João Gilberto apareceu como uma coisa misteriosa. “De vez em quando, um amigo perguntava: ‘É verdade que ele é viado?’ ‘É viado’, garantia outro. Ele era diferente de tudo até para um jovem de 18 anos. Eu tinha 14 anos e, na época, ter quatro anos a menos significava uma diferença brutal. Acho que, por isso, João pegou muito o pessoal da minha idade”, explica o astro. Não raro, outros nomes de sua geração, como Gil, Caetano e Edu Lobo, falam do exato momento em que ouviram Chega de Saudade pela primeira vez. “Foi demais pra todo mundo”. Não seria diferente para Zambujo.

A caravela da vez, João voz e violão foi produzido por Caetano Veloso e trazia na capa o rosto da atriz Camila Pitanga, à época com 23 anos. Na foto, ela faz um gesto de silêncio com o dedo indicador em riste à frente dos lábios. “Fico a imaginar fazer um disco com a Camila sentada à minha frente e eu cantando só para ela. Seria uma coisa fantástica, com certeza”, comenta ele.

"Em Portugal, o cantor tem que estar sempre mais alto que a banda. João Gilberto faz exatamente o oposto"

João Gilberto está careca de saber do efeito catártico de seus primeiros trabalhos. Mas talvez não contasse que seu álbum derradeiro representaria um divisor de águas para um músico de 25 anos do Alentejo. “Em Portugal, muitas vezes, avalia-se um cantor pela potência da voz, pelo número de decibéis que atinge, e ele tem que estar sempre mais alto que a banda. João Gilberto faz exatamente o oposto, ou seja, transmitir a mensagem sem se sobrepor à música. Acho isto fantástico: imaginar a voz como mais um instrumento musical que está ali numa jam com os outros”, explica.

O português manteve os ouvidos abertos para o que se produziu no Brasil pré bossa-nova. Encantou-se pelas canções que marcaram a era do rádio e já gravou sucessos imortalizados nas vozes de Nelson Gonçalves e Orlando Silva, como Noite cheia de estrelas, Lábios que beijei e Deusa da minha rua. Noel Rosa, também dessa geração, foi lembrado com Último desejo.

Veterano disfarçado pelas companhias, Vinícius de Moraes não ficou de fora. Foi gravado três vezes: Quando tu passas por mim aparece em Outro sentido (2008), disco a partir do qual a obra de Zambujo começa a se abrasileirar. No álbum seguinte, Guia (2010), a letra que o poetinha compôs para Apelo — parceria com Baden Powell — foi encaixada no fado Perseguição, eternizado na voz da maior do gênero, Amália Rodrigues. Fecha o disco mais recente Valsinha, melodia que Vinícius entregou para que Chico escrevesse a letra, invertendo a praxe da parceria.

O português, que certamente dividiria mesas de bar e composições com os dois, tivesse nascido mais cedo, conta que não foi difícil naturalizar a amizade com o ídolo. “É uma pessoa que consegue quebrar essa barreira com imensa facilidade”, diz. Nas conversas entre o tricolor e o “encarnado”, como é chamado quem torce pelo Benfica, música e futebol são uma constante. Mas se o primeiro tema costuma dar em arte, o segundo fica só na resenha.

Como gosta de adentrar as madrugadas na companhia de amigos, Zambujo nunca conseguiu acordar a tempo da tradicional pelada organizada por Chico às segundas e quintas no Recreio dos Bandeirantes. “Para fugir do trânsito da Barra, eles jogam sempre ao meio-dia, o que deve ser uma coisa horrível naquele sol do Rio de Janeiro”, explica. Ao estilo “camisola dez”, como na canção Zorro, um de seus principais sucessos, Zambujo diz jogar no meio-campo. “Eu distribuo o jogo, sou o criativo”, diverte-se.

"Já tínhamos comido e bebido algumas garrafas. De repente, Chico se levanta da mesa e vai buscar o violão"

Na plateia de seu primeiro show no Rio, no Espaço Tom Jobim, estavam Chico, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Caetano Veloso e seu filho Moreno. Pouco antes, o tropicalista tinha recebido Outro sentido de presente da jornalista Marília Gabriela. Em seu blog, escreveu que o canto do lusitano “era de arrepiar e fazer chorar”. De lá para cá, o português já dividiu o palco com os fãs de luxo Ney e Milton, além de Ivan Lins, Yamandú Costa, Zé Renato e a própria Roberta Sá, com quem faz um dueto em Sem Fantasia no tributo a Chico.

Embora as influências brasileiras se concentrem em gerações que já marcaram época, a nau do Alentejo também é soprada por ventos novos. O compositor carioca Rodrigo Maranhão, dono de um Grammy Latino, já teve três músicas gravadas por ele. Outro Rodrigo, o Amarante, também é lembrado pelo cantor, fã do disco Cavalo. Seu parceiro de Los Hermanos, Marcelo Camelo também impactou a obra de Zambujo. “O álbum Sou teve uma importância muito grande no disco que eu fiz nessa época, o Guia. Achei incrível a forma como ele mistura diferentes sons, alguns efeitos meio estranhos, pouco óbvios”, relata. Os dois se cruzaram algumas vezes no Bairro Alto — Camelo reside em Lisboa desde 2014.

Mesmo totalmente integrado ao circuito da MPB, os momentos ao lado de Chico ainda mexem com ele tal como o Pica do Sete, um fiscal de elétrico (bondinho) que inspira sua música de maior sucesso. Uma lembrança recente vem de um jantar no apartamento do Leblon. Mais uma vez, regado a vinho. “Já tínhamos comido e bebido algumas garrafas. De repente, ele se levanta da mesa e vai buscar o violão. Sem dizer nada, senta-se e toca quatro músicas do novo disco (Caravanas) que, até então, ninguém conhecia. Ficamos todos estupefatos, sem dizer nada, só a observar aquele momento mágico. Foi tão espontâneo que ninguém se lembrou de filmar”, recorda-se, ainda surpreso.

Tamanha admiração pelo músico brasileiro é recíproca. De início, a participação de Chico no disco não estava prevista. A ideia era não incomodá-lo. Entretanto, quando as gravações em estúdio começaram, ele acabou por se envolver diretamente no processo, a ponto de sugerir duas novas faixas: Nina (2011) e Cecília (1998), de fases mais recentes de seu repertório cinquentenário. Ao ouvir a interpretação da última música em estúdio, Chico cravou: “é a versão definitiva”. Depois, ainda surpreenderia Zambujo com um dueto em Joana Francesa. A princípio, o autor das canções não deve participar dos shows deste mês, mas, pelo histórico, pode voltar a aprontar.

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