Pré-sal, cleptocracia e a nova aposta suicida do Brasil
À direita e à esquerda, é preciso ouvir os alertas de Palocci sobre a economia predatória do petróleo País segue investimento 70,5% em combustíveis fósseis, enquanto China e França seguem outro rumo
O pré-sal é uma “maldição” e os petrodólares que compram “a tudo e a todos” deixaram o Governo brasileiro “entorpecido”. Por mais que me desse gosto ser o autor dessas colocações, elas não são minhas: provêm justamente de uma das pessoas que mais fizeram para que o país mergulhasse de cabeça no poço escuro da economia do petróleo, o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci Filho.
Numa carta de desfiliação partidária que já nasceu um clássico, Palocci, o outrora gênio político responsável pelo sucesso do Governo Lula e atualmente persona non grata do petismo, fez alertas graves sobre a obsessão dos donos do poder no Brasil pelos hidrocarbonetos. Tais alertas passaram batidos no noticiário, dado o teor de nitroglicerina do restante do texto. Mas é fundamental que eles sejam relidos e compreendidos, à direita e à esquerda.
Ao dizer que a descoberta das reservas supostamente fabulosas do pré-sal transformou o Governo brasileiro numa cleptocracia, Palocci revela um segredo de polichinelo. A chamada “maldição dos recursos naturais” é um fenômeno conhecido e bem estudado pelos economistas: países que encontram dinheiro fácil no subsolo começam a deixar de fazer investimentos produtivos em outros setores da economia. Acabam dependentes de uma única commodity e primarizados. Em geral, esse mesmo dinheiro cria uma casta política corrupta, mina a democracia e, quando ele acaba, ou quando o preço da commodity despenca, deixa em seu lugar um Estado falido e uma população na miséria.
O exemplo mais recente é a Venezuela, mas pense na Rússia dos anos 1990, no Iraque devastado, no Irã linha-dura, na corrupta Nigéria e na feudal Arábia Saudita, onde as mulheres acabam de conquistar o direito de... dirigir. A civilizada Noruega, que guardou num porquinho o dinheiro dos royalties do petróleo, o Canadá e os até recentemente democráticos EUA são exceções que confirmam a regra.
Nem é preciso ir muito longe atrás de exemplos. Basta olhar para o Rio de Janeiro, onde a riqueza petroleira alimentou um Governo cujo chefe está na cadeia – e, quando as receitas começaram a despencar, deixou atrás de si um Estado em frangalhos e uma janela aberta para a ressurgência do poder dos traficantes de drogas.
Palocci se esqueceu de dar esse aviso, mas a situação vai piorar. O petróleo enquanto mola-mestra da economia mundial está com os dias contados. Os veículos elétricos estão entrando no mercado nos países desenvolvidos a uma velocidade muito maior do que indicavam as projeções, constatação que fez a revista The Economist decretar em agosto em sua capa “a morte do motor a combustão interna”. De acordo com alguns estudos, os carros elétricos podem levar a demanda por petróleo ao pico já na próxima década e adquirir domínio do mercado em 2035. Para quem e por quanto tempo o Brasil espera vender petróleo?
Outro fator que ameaça encurtar o sonhado futuro petroleiro do país é a realidade climática. Mesmo sem El Niño, 2017 se encaminha para ser o segundo ou terceiro ano mais quente da história. Num intervalo de três meses assistimos a uma onda de calor brutal na Europa, monções assassinas na Ásia e três superfuracões no Atlântico. A capital do Brasil raciona água e as hidrelétricas estão mais uma vez a perigo. A única forma de mitigar essa realidade é uma implementação rápida e ambiciosa do acordo do clima de Paris. Só que a matemática de Paris é implacável: a maior parte das reservas de hidrocarbonetos do mundo terá de ficar no subsolo para que o objetivo final do tratado (salvar a humanidade) seja cumprido.
O Governo do Brasil parece ainda não ter entendido isso. Depois que a turma do Palocci deixou o poder, o país dobrou a aposta no petróleo e virou o novo queridinho das petroleiras estrangeiras. No próximo dia 27, o país realizará um aguardado leilão de blocos do pré-sal que, aventa-se, poderá render até US$ 36 bilhões (ironicamente, no mesmo dia, o Itamaraty estará discutindo com a sociedade civil a atuação do Brasil na próxima conferência do clima.) Também em outubro poderá ser promulgado um plano de eficiência energética em veículos, o Rota 2030, que dá passe livre aos veículos de carga a diesel. O atual presidente mantém a mesma proporção de investimentos em fósseis que sua antecessora: 70,5% do total de investimentos em energia. Ao mesmo tempo, e na contramão de nações como China e França, cortou investimentos em ciência, educação e inovação, reduzindo a chance de diversificar a economia no médio prazo.
O plano parece suicida. Enquanto a transição para economia descarbonizada acontece de Pequim a Palo Alto, o Brasil vai despejar bilhões em infraestrutura pesada para extrair e processar combustíveis fósseis e incentivar uma indústria automobilística para fabricar as carroças do século 21.
Em sua cela, no Paraná, Antonio Palocci pode ter o consolo de não fazer parte dele desta vez.
Carlos Rittl é secretário-executivo do Observatório do Clima, uma rede de 43 organizações da sociedade civil
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