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“O Governo e Belo Monte têm uma dívida impagável com a população do Xingu e de Altamira”

Antônia Melo da Silva recebe o Prêmio Soros por defender os direitos de 30.000 indígenas desalojados pela construção de Belo Monte

Antônia Melo da Silva, em sua casa, dias antes de ser demolida.
Antônia Melo da Silva, em sua casa, dias antes de ser demolida.Daniela Nascimiento (Xingu Vivo Para Sempre)

Antônia Melo da Silva (Piripiri, Piauí, 1949) não é um rosto novo na luta pelos direitos humanos e ambientais. Está há mais de duas décadas na linha de frente de uma batalha que não está disposta a perder; a que ela — e centenas, milhares como ela — mantêm contra as barragens de Belo Monte, às margens do rio Xingu, no Estado brasileiro do Pará, que forçou 30.000 pessoas a abandonar suas terras. Sua tenacidade e coragem lhe valeram ser reconhecida, aos 68 anos, pelo prêmio anual da Fundação Alexander Soros, uma organização destinada a promover os direitos civis, a justiça social e a educação mediante a concessão de subvenções a movimentos que se destacam nesse trabalho. Antônia recebeu o prêmio em 10 de outubro em Nova York, representando o Movimento Xingu Vivo para Sempre, a associação que ela mesma fundou e com a qual tornou sua causa conhecida no mundo todo.

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O assassinato de ativistas ambientais se tornou rotina — 200 morreram apenas em 2016 em todo o mundo — e a própria Antônia foi ameaçada por pistoleiros em mais de uma ocasião, mas ela continua dedicada a uma luta titânica. Até a Nova York, essa cidade de arranha-céus e concreto armado, levou um pedacinho do Pará, a região que tanto amor e tristezas lhe causa: envolta em colares de conchas, pedras, sementes de coco e açaí, pulseiras e exibindo cabelos selvagemente cacheados, Antônia é mais do que nunca uma guerreira amazônica. Diz em uma entrevista por videoconferência que não sente medo. “Sei que estou fazendo o certo; luto em defesa dos que menos podem se defender, pelos direitos humanos, pela vida. É um compromisso que está dentro de mim e que me move a não desistir”, afirma. Para ela, é importante saber que não está só, que há muita gente a seu lado que lhe dá força e coragem para continuar.

A ativista dedicou sua vida a batalhar contra uma das 500 barragens que avançam sobre a Amazônia e a ameaçam de morte. “Sou filha de camponeses, desde criança aprendi com meus pais o valor da luta pela terra, por nossos direitos”, afirma com orgulho. Militou desde cedo na defesa das políticas públicas, e nos anos oitenta se uniu à causa dos indígenas afetados pela incipiente construção da barragem de Belo Monte. Nessa década os povos originários conseguiram parar o projeto, então nos anos noventa se concentrou mais nos direitos das mulheres e no acesso à saúde. Quando o ex-presidente Lula chegou ao poder e esse projeto voltou a andar em 2003, as comunidades se mobilizaram e criaram o movimento Xingu Vivo para Sempre, com Antônia à frente.

Críticos de Belo Monte definiram a hidrelétrica de várias formas, sendo “mostruário de crimes ambientais” uma das mais assertivas. O projeto, pensado na ditadura e executado na democracia, trata da terceira maior hidrelétrica do planeta, depois da de Três Gargantas, na China, e da de Itaipu, na fronteira entre Paraguai e Brasil. Incluída no Plano de Aceleração Econômica da era de Lula e Dilma Rousseff, este megaprojeto inundou 500 quilômetros quadrados de selva amazônica e desalojou milhares de pessoas que perderam seu modo tradicional de vida, sua casa, sua alimentação, sua segurança e sua felicidade. “Foi feito sem consultar a sociedade local nem os povos indígenas”, denuncia, incansável.

As consequências são bem palpáveis e, para a ativista, “terríveis e irreversíveis”. Atualmente, a usina hidrelétrica está parcialmente em operação, com seis de suas 18 turbinas funcionando há um ano. “O primeiro impacto foi a divisão dos povos, uma estratégia da empresa [Norte Energia, um consórcio com participação pública] e do Governo para fragilizar os povos, que foram divididos e passaram a brigar uns com os outros”, afirma. Ela se refere às compensações econômicas oferecidas aos afetados. “Nunca tinham tido acesso a dinheiro, eram 30.000 reais por comunidade para enfrentar as mudanças que iam sofrer, mas esse tipo de ação foi uma estratégia para dividir: foi oferecido a algo entre 19 e 40 comunidades”, explica. Quem recebia os fundos eram os caciques, então houve quem tenha decidido se separar de sua comunidade e formar outra para se tornar chefe e receber o pagamento. “Isso fragmentou a luta dos povos”, afirma.

Os outros grandes impactos foram a invasão dos territórios ancestrais e as doenças como diabetes, hipertensão e pneumonia; entre as crianças, problemas intestinais como diarreia e desnutrição. “Tudo está muito vinculado com a mudança de dieta; se não se pode obter alimento de nossos rios e hortas, temos que comer comidas industrializadas e processadas.” O relato de Antônia coincide com os achados de um relatório do Instituto Socioambiental Brasileiro: entre 2010 e 2012, a desnutrição infantil aumentou 127% afetando um quarto das crianças da região e a demanda por atenção médica tinha aumentado 2000%, entre outros dados.

Antônia Melo da Silva sabe bem do que fala, pois ela e sua família estiveram entre os 30.000 desalojados à força. Em 11 de setembro de 2015 perdia a casa onde tinha criado seus filhos e netos, onde tinha plantado sementes já transformadas em árvores, trazidas de sua cidade natal. Um refúgio que não era só dela, mas de todos os vizinhos e afetados pela megainfraestrutura. Bem do lado da própria selva, a ele se recorria em busca de conselho, de ajuda, de força, em busca de quem ouvisse, abraçasse e estimulasse a não desfalecer. O baluarte da resistência. Ainda chora quando se lembra: “Minha experiência foi de uma grande violência, de muito sofrimento, não desejo isso para ninguém. Não queria sair da minha casa, não estava à venda, não havia nenhuma oferta minha”, soluça. Agora vive longe de onde se criou e não se acostuma a seu novo local, um bairro distante onde sequer tem acesso a infraestrutura, como milhares de famílias. “Me sinto um peixe fora d’água.” Em entrevista ao EL PAÍS em 2015, a Norte Energia assegurou, entre outros pontos, que "sempre procurou manter as famílias e os grupos sociais de uma determinada localidade num mesmo bairro que recebeu os moradores de áreas de riscos".

"O Governo e a empresa têm uma dívida imensa, impagável, com a população do Xingu e Altamira"

Seja como for, a guerra agora é para conseguir que haja reparação aos afetados. “Demandamos o cumprimento do que se contemplava nas condições ambientais e sociais para a construção do projeto”, afirma a ativista. “Em uma delas se dizia que as novas casas seriam de três dimensões diferentes”, segundo o tamanho das famílias, e também que contariam com os serviços básicos mínimos, como escolas e hospitais.” Cinco anos depois, nada é como se prometeu. “A qualidade das moradias é muito ruim, estão caindo, têm rachaduras”, afirma. Também exigem a melhora das condições de vida de Altamira, a cidade onde agora mora a ativista e seus parentes. Foi muito afetada pelo aumento da população que o projeto trouxe e não houve os investimentos devidos em serviços: “A população pede água. Também não há saneamento. O Governo e a empresa têm uma dívida imensa, impagável, com a população do Xingu e de Altamira.”

O descumprimento desses requisitos deu lugar a duas importantes decisões judiciais federais. Em abril, a Justiça suspendeu todas as atividades da hidrelétrica até que a empresa proporcionasse às comunidades um sistema adequado de eliminação das águas residuais. Em 13 de setembro passado, outro tribunal cancelou a licença ambiental de Belo Monte devido a irregularidades das moradias das comunidades reassentadas. A empresa, no entanto, não parou a construção, e atualmente está sob o risco de sanções financeiras e até de intervenção policial para forçar o cumprimento. Ao mesmo tempo, o esquema de corrupção que vem sendo revelado no Brasil nos últimos tempos chegou a Belo Monte: o consórcio Norte Energia está sendo investigado pelo pagamento de milhões em subornos a partidos políticos.

Continuaremos lutando contra o que representa: um modelo de desenvolvimento destrutivo

O prêmio recebido por Antônia Melo da Silva não a devolverá a seu lar perdido, mas é um incentivo. “É um reconhecimento que vai fortalecer a luta de pessoas que foram ameaçadas, que lutam contra o projeto, e para que todos e todas que defendem a justiça ambiental e os direitos humanos saibam que vale a pena continuar”, diz com determinação. Mais ainda agora que um novo atropelo, a mina aberta Belo Sun, ameaça afogar ainda mais a região do Xingu. Ou agora que os ignorados povos ribeirinhos — cujos direitos não são reconhecidos pela Constituição, diferentemente dos indígenas — começam a conseguir que sejam minimamente levados em conta. É aí agora que está a luta. E assim Antônia adverte: “Apesar de tudo que passei durante desses anos, Belo Monte não é um fato consumado, então continuaremos lutando contra o que representa: um modelo destrutivo de desenvolvimento”.

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