_
_
_
_
_

A paisagem idílica que esconde os obscuros segredos de ‘Big Little Lies’

Série HBO usa Monterey para criar uma visão “hipnótica” que muda a percepção da cidade de John Steinbeck

Eneko Ruiz Jiménez

Nova Jersey em Família Soprano. Baltimore em The Wire. Novo México em Breaking Bad. As séries levaram o espectador a cada Estado dos EUA, de cidade a cidade. Todos esses lugares eram outro personagem, necessário para entender os protagonistas. E, ao mesmo tempo, a própria ficção esculpiu a personalidade abstrata desse ambiente desconhecido na memória do espectador global. Até este ano, por exemplo, a californiana Monterey era, literalmente, uma vila de pescadores, trabalhadora e multicultural. Mas faz décadas que a grande depressão ficou para trás. Hoje, seu retrato em Big Little Lies, a minissérie favorita ao Emmy, com 16 indicações (no fim de semana passado já ganhou três), é o oposto. Volta a ser protagonista, embora como lugar de cartão-postal, com mansões, mães aburguesadas e segredos. Monterey, marca HBO.

As protagonistas de 'Big Little Lies'.
As protagonistas de 'Big Little Lies'.HBO

Agora parece impossível entender a história das mulheres de Big Little Lies e suas desavenças sem essas mansões cujos pátios banham em praias particulares da Baixa Califórnia, mas nem sempre foi assim. O romance de Liane Moriarty, não em vão, situava essas modernas mulheres desesperadas com segredos na costa norte de Sydney. “A HBO queria a série nos EUA para que tivesse um apelo global e, na prática, reunisse mais estrelas e que fosse mais barata. Mas acho que a história seria universal em qualquer lugar”, explicou a protagonista e produtora (além de australiana) Nicole Kidman em entrevista à revista Variety.

O destino escolhido no final foi esse enclave turístico norte-americano e seus arredores, cheio de praias quilométricas, galerias de arte, luxo e uma longa história artística que o EL PAÍS visita a convite da HBO. Em suas costas, a três horas de carro de São Francisco, escreveu, por exemplo, Robert Louis Stevenson, embora sua culminação no imaginário literário só tenha chegado em 1945, quando John Steinbeck as transformou em protagonista titular de A Rua das Ilusões Perdidas e em cenário de A Leste do Éden.

Mas as descrições de Steinbeck têm pouco a ver com o espetaculoso mundo da ficção televisiva, cujo DVD da primeira temporada será lançado no Brasil no dia 28 de setembro. Na rua comercial que dá nome ao romance, existe hoje um busto do cronista da grande depressão em frente a um shopping center com seu nome. Um ponto que reflete exatamente o salto dado por aquela vila de pescadores, que esqueceu sua indústria baseada em sardinhas, mas que respeita seu passado com construções de madeira branca, certo ar europeu e cheiro de porto.

“Tem uma beleza hipnótica. Queríamos atrair o público pela estética e fazê-lo querer ir para lá nas férias”, confirmou o criador David E. Kelley (Ally McBeal, Boston Legal) ao apresentar a produção. O embarcadouro dos pescadores, Fisherman’s Wharf, por exemplo, tornou-se lugar de restaurantes finos e lojas onde mães de classe alta interpretadas por Nicole Kidman, Reese Witherspoon e Shailene Woodley –as três indicadas ao Emmy– compartilham café e confidências. Na entrada da cidade pode-se ler: “Aqui foi rodada Big Little Lies”, embora, de fato, o cais só tenha servido de inspiração. Foi reconstruído em estúdio. E engana bem. Os comerciantes sabem que não podem deixar passar a oportunidade. A cidade de 28.000 habitantes quer se tornar um destino global que atraia os espectadores ao litoral, aos parques nacionais onde podem fazer longas corridas pelas praias, aos hotéis em enclaves naturais e ao seu gigantesco Aquarium, que não só Ziggy visitava na série, como também inspirou o centro quase carcerário de Procurando Dory.

O Aquarium onde passeiam personagens de ‘Big Little Lies’.
O Aquarium onde passeiam personagens de ‘Big Little Lies’.E. R. J.

Desde os títulos dos créditos de anúncio turístico, a série tenta vender ao espectador essa região que contempla o Pacífico, desde Carmel ao parque nacional de Garrapata. Algumas escolhas ainda chamam a atenção dos moradores: “Eles devem morar muito longe da escola para ter de dirigir pela ponte de Bixby, a cerca de 40 quilômetros de Monterey”, comenta uma agente de viagem em frente a esse enorme monumento entre montanhas a uma hora do centro da cidade. Enquanto isso, um grupo de turistas fotografa o enclave: “Já era famoso antes da série”. Uma mentira não pode arruinar uma boa vista.

Tampouco todas as casas estão no lugar onde rodaram durante 20 dias. A casa luxuosa de Renata (Laura Dern) fica em Malibu, a cinco horas de carro. E a mais humilde do personagem de Woodley, em Pasadena. Embora em Carmel também existam mansões de sonho, das modernas com janelas envidraçadas que olham para uma praia particular às clássicas e senhoriais, com preços que variam de nove milhões de dólares (cerca de 28 milhões de reais) a 41 milhões de dólares (128 milhões de reais).

O cais recriado em estúdio e o cais real.
O cais recriado em estúdio e o cais real.HBO / E. R. J.

Os turistas –que já esqueceram que Clint Eastwood foi prefeito de Carmel ou que em suas casas moraram estrelas como Brad Pitt, Clark Gable, Gene Hackman ou mesmo Hitchcock (que fez Os Pássaros baseado em suas paisagens)– vão ao hotel Hyatt Carmel Highlands perguntando, como reconhecem os empregados, onde fica o quarto em que Kidman esteve. Nem eles sabem direito, mas Monterey já destila essa personalidade no imaginário coletivo. Big Little Lies começa a projetar um novo lugar no subconsciente. As sardinhas dão lugar ao luxo, as enlatadoras de peixe às mansões com obscuros segredos, os romances às mulheres poderosas.

VOLTA À CALIFÓRNIA...

Big Little Lies é uma minissérie fechada. Os 10 episódios resolvem todos os mistérios em torno do assassinato ocorrido na aparentemente perfeita Monterey (Califórnia). Mas as atrizes e os personagens agradaram tanto que a segunda temporada está mais próxima do que muitos poderiam acreditar.

O primeiro passo da HBO foi buscar na fonte original para pedir uma nova história a Liane Moriarty. A escritora diz que não escreverá outro romance, embora esteja disposta a criar um novo conflito em torno de seus personagens na televisão. Se a ideia for aceita, a segunda temporada será uma realidade.

Whiterspoon e Kidman, produtoras e protagonistas, também adorariam continuar. “Ambas podem ser muito persuasivas”, disse em junho a diretora de programação da HBO, Casey Bloys. Talvez não seja o mais lógico, mas depois do sucesso da proposta e com a predisposição das partes, não parecem dispostos a deixar passar a oportunidade. Em Monterey as pessoas parecem contentes. Várias galerias de arte e membros do escritório de turismo já oferecem –meio a sério, meio de brincadeira– seus serviços ao canal durante a visita, à menor chance. Cada lugar quer enganar bem no cartão-postal.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_