_
_
_
_

Sarahah, o ‘aplicativo da sinceridade’ que fomentou o cyberbullying

Aplicativo criado para o envio de críticas construtivas às equipes nos locais de trabalho vira febre e torna-se ferramenta de assédio

MAX
Mais informações
Norueguês recebe multa de 30.000 reais por publicar imagem de assaltantes no Facebook
Instagram Stories comemora primeiro ano e destaca participação de brasileiros
Internet se rebela contra a ditadura dos algoritmos

Nesse ano, um novo aplicativo chamado Sarahah (“sinceridade” em árabe) apresentou sua versão em inglês. Prometia ser um veículo anônimo para o envio de críticas construtivas às equipes nos locais de trabalho. Desde então atraiu 300 milhões de usuários e chegou ao primeiro lugar das listas de downloads da “loja de aplicativos” da Apple em mais de 30 países. Os usuários, entretanto, já começaram a informar que estão recebendo mensagens intimidatórias e obscenas.

Os criadores do Sarahah dizem que o aplicativo permite aos usuários “obterem uma reação sincera por parte de seus amigos e seus colegas de trabalho” com a finalidade de “ajudar as pessoas a desenvolverem-se por si mesmas ao receberem comentários construtivos anônimos”. Os usuários se registram em uma conta e recebem um link que podem compartilhar em outras redes sociais, em que convidam a todos os que têm acesso ao seu perfil a enviarem mensagens anônimas. Os remetentes não precisam ter uma conta. No mundo árabe, onde o que se diz está submetido a um controle cultural muito maior, logo foi utilizado para se fazer declarações de amor entre homossexuais e muitas outras que, de outro modo, seriam proibidas. Como é natural, seu fundador, Zain al Abidin Tawfiq, de 29 anos e natural da Arábia Saudita, sabia que o aplicativo poderia ser utilizado para assédio e incluiu características de filtragem e bloqueio para evitar um uso distorcido. Mas como a empresa só tem três funcionários, não pode moderar milhões de mensagens por dia.

Aplicativo foi criado para incentivar mensagens construtivas anônimas
Aplicativo foi criado para incentivar mensagens construtivas anônimas

A versão inglesa foi muito bem-recebida pela geração do Snapchat de menos de 25 anos, mas não ficou no primeiro lugar das listas de downloads até o Snapchat lançar as atualizações que permitiam a seus usuários sincronizarem com suas contas do Sarahah. Se na opinião de alguns usuários o Sarahah e outros aplicativos de sinceridade semelhantes trazem um apoio que estimula a autoestima, também é verdade que o cyberbullying ocorre em grande quantidade, já que as pessoas aproveitam o anonimato para dizer sem nenhum risco a seus amigos e colegas de classe tudo o que não se atreveriam a dizer-lhes frente a frente.

Em uma resenha sobre o aplicativo publicada na loja de aplicativos do Google, o usuário Jordan Adams escreveu: “No começo era genial porque brincávamos com os amigos e coisas do tipo. Então alguém mandou meu endereço de e-mail e me deixou maluco. As pessoas me mandavam um monte de perversões. Queria cancelar minha conta, mas não consegui”.

“No começo era genial porque brincávamos com os amigos e coisas do tipo. Então alguém mandou meu endereço de e-mail e me deixou maluco. As pessoas me mandavam um monte de perversões”

Também no Google Play, um casal de pais chamados Paul e Olivia diziam: “Nossa filha o utilizou uma vez. No começo recebeu comentários agradáveis, mas depois começaram a entrar pouco a pouco mensagens mais mal-intencionadas... No último dia antes de cancelar o aplicativo recebia mensagens dizendo para que se suicidasse”.

Nem o primeiro, nem o último

Para os pesquisadores como eu, o Sarahah nos causa uma profunda sensação de dejà vu. O primeiro de uma longa lista de aplicativos de comentários semianônimos foi o Formspring, que foi lançado no mercado em 2009 e foi ligado a vários casos de suicídios de adolescentes nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. O proprietário reprogramou o site e realizou diversas estratégias de prevenção ao assédio, mas a ideia original foi reproduzida pela equipe letã do Ask.fm, que também foi relacionado a vários suicídios de adolescentes.

Outros aplicativos polêmicos nos quais reina o anonimato são o Yik Yak – que fechou nesse ano –, o After School e o Secret. Todos oferecem o mesmo. Dão ao usuário a sedutora oportunidade de averiguar o que as pessoas pensam “realmente” dele, combinada com a tentação ao emissor de ser brutalmente cruel com alguém que “mereceu”.

Em meu estudo sobre o Ask.fm e o Formspring, as adolescentes se dividiam naquelas que culpavam os assediadores por enviarem “ódio” e as que culpavam principalmente o receptor por registrar-se no serviço. Algumas diziam que as pessoas que se queixavam do assédio nos sites anônimos o faziam para chamar a atenção, que não deveriam estar na Internet se eram tão sensíveis, e que não deveriam “fingir que ficavam surpresas” que nem todos os comentários fossem positivos.

A tendência é culpar as vítimas por registrarem-se em serviços desse tipo

Essa mesma culpabilização das vítimas já está presente nas resenhas do Sarahah, algumas das quais parecem ter sido copiadas e coladas repetidas vezes, ao mesmo tempo em que dão cinco estrelas ao aplicativo. Aqui está um exemplo:

“Eu digo a todos que se queixam de que isso estimula o assédio que estão completamente enganados. Toda a culpa é do usuário por entrar na Internet para que qualquer um diga o que quiser dele anonimamente. É fácil: se não quer sofrer assédio, não use o aplicativo. Não queira receber comentários para depois se queixar”.

A avaliação dos colegas

Essa culpabilização das vítimas não leva em consideração a enorme ânsia dos jovens em obter o reconhecimento de seus colegas, que infelizmente é mais forte entre os espíritos mais sensíveis: os que não se encaixam e os que já sofreram assédio.

Em sua obra sobre as adolescentes Odd Girl Out [Garota Fora do Jogo], Rachel Simmons descreve esse desejo de confirmar o próprio valor social como um “ciclo tóxico que se auto reforça”. Os aplicativos em que o anonimato é unilateral, como o Sarahah, seduzem os usuários com a promessa de que obterão o reconhecimento de seus iguais, o que é prometer água no deserto. Mas os comentários podem ser especialmente ofensivos porque vêm de pessoas que conhecem bem os usuários. Sabem de quem você gosta, que roupa vestiu na festa, o que disse, e podem usar tudo isso contra você.

Como lidar com esse problema? O surgimento cíclico desses aplicativos e sua enorme popularidade mostra que respondem a uma profunda necessidade, de modo que não será fácil erradicá-los por mais que causem problemas, e até mesmo provoquem suicídios, com frequência. Mas existem algumas medidas que podem ser tomadas. A mais evidente é contratar um grande número de moderadores humanos, criar e controlar uma tecla de “aviso de assédio” bem visível, e colaborar com especialistas em prevenção do assédio, algo que o Ask.fm faz atualmente.

Essas iniciativas, entretanto, são apropriadas às empresas veteranas, mas não às jovens empresas de tecnologia quase sem capital. Talvez a verdadeira responsabilidade recaia sobre as lojas de aplicativos em que são vendidos, como o Google e a Apple. Essas empresas bem-dotadas de pessoal e com excelente capacidade financeira poderiam fazer com que os serviços de mensagens semianônimos cumprissem requisitos mínimos antes de aparecerem na loja, ao invés de limitarem-se a colocar uma advertência avisando que estão classificados para uso sob “orientação dos pais ou responsáveis”, que a maioria dos pais nunca verá. Existem inúmeros exemplos do prejuízo que esses aplicativos podem causar. Já é hora de começarmos a aprender com os erros do passado.

Amy Binns é professora de Jornalismo e Comunicação Digital da Universidade de Lancashire Central.

Cláusula de divulgação:

Amy Binns não trabalha para nenhuma empresa ou organização que possa se beneficiar desse artigo, não faz trabalhos de assessoria, não tem ações e não recebe financiamento. Declara também não ter outros vínculos relevantes além do cargo acadêmico mencionado.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_