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Ney Matogrosso: “Eu sempre falei claramente sobre tudo o que me incomoda e vou continuar falando”

O artista, que completa 76 anos nesta terça, diz que as reações suscetíveis a suas palavras são uma novidade para ele. Prestes a ganhar uma segunda biografia, cantor foi sensação no Festival de Inverno de Bonito

Ney Matogrosso no Festival de Inverno de Bonito.
Ney Matogrosso no Festival de Inverno de Bonito.André Patroni

Ney de Souza Pereira, Ney Matogrosso, (Bela Vista, 1941) faz 76 anos nesta terça-feira. Não haverá festa, está cansado demais de tanto trabalhar. O Brasil de hoje, “com essas transações tenebrosas”, também lhe cansa, mas tende a ser otimista: “Meu olhar não se reduz ao que estou vendo. Tudo isto vai passar, e muita gente que está agora no poder vai parar na lata do lixo da história”, disse a jornalistas. Isso sim, Ney diz não entender por que “o povo de junho” [de 2013] não está na rua.

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Após ser homenageado no Prêmio da Música Brasileira no Rio, no último dia 19, Ney viajou até Bonito, Mato Grosso do Sul, a 150 quilômetros da sua cidade natal, onde costumava passear com uma faca enfiada na cintura antes de se alistar na Aeronáutica para fugir do autoritarismo do pai. Era 1959, quando Mato Grosso era um Estado só. Não há nostalgia da sua terra, embora tenha adorado a sempre calorosa recepção do público. O artista era a atração principal do Festival de Inverno de Bonito, uma ode a artistas da região, do reggae aos ritmos sertanejos e fronteiriços fora do eixo artístico Rio-São Paulo, e encheu a praça principal do município, famoso por seus passeios entre águas cristalinas. As senhoras, seu público mais fiel, gritavam entusiasmadas e o cariciavam quando estava a tiro. Todos vibravam diante a transformação, a energia e as provocações sensuais de Ney.

Já no aeroporto, de volta ao Rio, ele passava praticamente despercebido. Com o livro Na Iminência do Extermínio - A História Dos Judeus da Europa Antes da Segunda Guerra Mundial nas mãos, Ney voltava a ser Seu Pereira, o homem reservado e amante da solidão fora dos palcos.

Pergunta. O que você sente ao tocar no seu Estado? Bate uma nostalgia?

Resposta. Não é nostalgia. Mas depois de eu fazer um show em Corumbá [norte do Mato Grosso do Sul], cerca de dez anos atrás, eu sim tive um sentimento de pertencimento àquela terra que eu nunca tinha tido até então. Algo aconteceu comigo, eu me percebi daqui. Talvez por ter sido um festival de artes latino-americano, eu me vi representando o Brasil naquela cidade, onde fui várias vezes na minha infância, me senti parte desta terra.

P. Mas você já quis voltar a morar em Mato Grosso do Sul?

R. Vinha um pensamento na minha cabeça de voltar. Mas eu dizia para mim mesmo, “mas o que eu vou fazer em Mato Grosso se meus avôs morreram, se os lugares que eu conhecia não existem mais? Aí, passei num lugar no Rio, olhei uma cachoeira numa floresta, voltei para comprar aquilo lá e quando fui fazer os negócios soube que aquele lugar se chamava Serra Mato Grosso. Era para aquele Mato Grosso que eu tinha que ir.

P. Você já quis gravar um álbum de música fronteiriça, uma volta às origens. Em que pé está esse projeto?

R. Isso já passou pela minha cabeça muito tempo atrás. Começamos a organizar, mas a coisa não foi para frente. Mas eu fiz recentemente um show com Alzira e Tetê Espíndola todo voltado para esse repertório.

P. A última vez que conversamos, em outubro de 2015, você dizia que, além de outros tantos projetos que estavam em marcha, tinha um repertório pop quase pronto...

R. Sim, e mais tantos projetos que surgiram e que eu não vou dar conta de tudo. Eu tenho que me decidir pelo que eu vou fazer. Meu impulso é me concentrar nesse repertório pop e levar isso adiante. Não tem data. O projeto vai mudando, estou aberto as possibilidades que vão surgindo, não estou preocupado. Não estou com pressa.

P. Nesta terça-feira faz 76 anos. O aniversário é uma data feliz para você? Como você gosta de comemorar?

R. É um dia normal. Às vezes eu comemoro, mas esse ano não vou comemorar porque estou tão cansado de trabalhar... Estou tão cansado que quando eu imaginei produzir uma festa...disse não. Vou passar meu aniversário no meu sitio [Serra Mato Grosso, no litoral do Rio] tomando banho de cachoeira, com os amigos que estiverem disponíveis nessa hora.

P. Está sendo escrita uma biografia sobre você. É fácil para você recuperar tua história ou há episódios que prefere esquecer?

R. Vou fazer três entrevistas com o autor. Não sei se será fácil porque ainda não nos encontramos. Agora, posso te dizer que na primeira biografia que fizeram sobre mim foi muito desagradável. Durou quatro anos e eu não suportava mais aquilo. Eu não escondi nada, mas eu achei que quatro anos você se encontrando com uma pessoa regularmente para falar da sua vida... Eu gosto da minha vida, mas o que me aborrecia é que a pessoa que estava escrevendo me contestava. Ai eu pensava “você está aqui para discutir comigo, doutor Freud?”. Eu falava mesmo para ela: “Eu estou com ódio de você, não posso mais olhar na sua cara”.

P. E o resultado? Não valeu a pena?

R. Tem muitas coisas interessantes aí, mas há uma coisa muito visível nessa biografia, que o tempo inteiro eu falo uma coisa e ela me contesta. E eu acho que biografia não é isso. Por exemplo, ela me dizia que todas as mulheres que ela tinha visto comigo eram mulheres que saíam nuas em capa de revista, que elas apareciam coleantes ao meu lado. E eu dizia: “Mas vem cá, você queria que eu virasse as costas para essas mulheres?”. Havia um tom de preconceito. Desta vez, não sei como vai ser. Ele não quer que eu leia [antes de ser publicada], e eu disse: “Tudo bem, você tem todo o direito, mas então preste muita atenção com a informação que você vai pegar. Porque a maioria dos meus amigos de 30 40 anos morreu naquela leva de AIDS e então não sei onde você vai buscar informação ao meu respeito. Então, cuidado, porque o que não for verdade eu vou contestar”. Eu não escondo nada da minha vida, agora, não mintam ao meu respeito.

P. Falando de episódios da sua biografia. Dizem que você poderia ter sido a voz de Kiss.

R. Não, não, não... A gente [Secos & Molhados] fez uma turnê no México e houve uma aproximação de dois empresários norte-americanos. Eles pediram para conversar comigo, a ideia era me levar aos Estados Unidos, mas eu disse que não estava interessado, que eu estava começando uma carreira no meu país. Eles disseram que a imagem era muito boa mas o som tinha que ser mais pesado. Quando eu vi Kiss, eu entendi o que eles queriam dizer.

P. Os empresários que te procuravam foram os responsáveis pelo lançamento de Kiss?

R. Eram os mesmos empresários. E o Zé Rodrix, ele gravou Fala do primeiro disco da gente, deu uma entrevista contando que ele levou a gravação na casa dele onde havia dois futuros Kiss hospedados. Ele mostrou a música e mostrou uma foto nossa. Sendo que uma foto dos Secos & Molhados tinha saído já numa revista americana, porque o que o grupo tinha feito de dinheiro para o mundo era bastante, bastante...[frota seus dedos índice e polegar sem terminar a frase].

P. Então vocês, e você especialmente, foram uma inspiração para eles?

R. Sim, sim. Mas eu não tenho nada a ver com a história, quando me procuraram eles nem falaram em Kiss.

P. Muitas das suas falas conseguem levantar sonoras polêmicas? É o Brasil suscetível demais ou é você que mexe nas feridas abertas?

R. Eu sempre falei claramente sobre tudo o que me incomoda. E vou continuar falando e me expressando com a maior clareza. Eu não tenho por que, agora, neste momento da minha vida, me esconder. Essa suscetibilidade é uma coisa nova.

P. A última controvérsia veio por você dizer numa entrevista para Folha de S. Paulo que não se sente à vontade de levantar a bandeira do coletivo gay, que você é mais do que sua orientação sexual. O que você achou da repercussão das suas palavras?

R. Eu estava certo falando isso. Eu ignorei, não me manifestei, não respondi à polêmica. Durou três dias e sumiu. Me surpreende porque eu achava que o Brasil já estava um pouquinho mais preparado para conviver com as liberdades de pensamento. Ou entender os textos. Porque há pessoas que leem e não entendem. Tem um nome para isso, você sabe né? Analfabetos funcionais.

P. Você ganhou um processo judicial para retirar da rede uma postagem de Kim Kataguiri, líder do MBL, na qual, numa foto junto com você, te apresentava como defensor do impeachment. Por que você fez questão de entrar na Justiça?

R. Porque ele não me perguntou o que eu achava. Ele não conversou comigo. Ele não pode fazer uma afirmação sem ter me perguntado.

P. Mas você sabe que nessa postagem ele usou a entrevista que você deu ao EL PAÍS onde é perguntado se você é a favor do impeachment de Dilma e você responde: “Se ela for culpada, ela deve sair”.

R. Mas é diferente. “Se ela for culpada...” é diferente de “ele apoia o impeachment da presidente Dilma”. Eu não sabia quem ele era.

P. Qual é seu análise do tempo transcorrido daquele período pré-impeachment, quando você estava muito chateado ao ver os casos de corrupção no PT estourarem, até hoje? Você via no impeachment, talvez, uma saída a crise...

R. Eu via uma possibilidade, sim... Mas as coisas vêm piorando. Há um retrocesso enorme em todos os sentidos no nosso país. Estou mais envergonhado ainda. Porque quando eu vejo a Amazônia sendo liberada para cultivo... que é isso? Quando está todo o mundo preocupado com o ambiente, o Brasil libera a Amazônia para porem abaixo? E essa é só uma gotinha.

P. Um dos temas que mais mexe com você é a influência política das igrejas. Como você está levando a Prefeitura de Crivella?

R. [Gargalha] Acho tenebrosa. Ele é só influenciado pelas suas crenças. A cabeça dessas pessoas é assim, só pensam nisso. Está errado porque a Constituição do Brasil diz que o país é laico. Igreja, religião e política não devem ser misturadas. Então já é um desrespeito à Constituição do Brasil, a Igreja, qualquer uma, estar dentro do Congresso brasileiro, regendo, comandando ou fazendo leis para o Brasil. Não tenho nada contra a igreja evangélica em especial, é que ela é a mais evidente dentro do Congresso brasileiro.

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