Minha nega, tem música nova do Chico
Inspirado na cantiga inédita do velho Francisco, a chance de se devotar ao amor de hoje e à memória dos amores perdidos
Lembra-te, minha nega, que a morte da canção é apenas uma lenda, que a canção de amor está cada vez mais viva, que mais do mesmo é sempre bem-vindo, desde que venha do mesmo Francisco.
Diante dos incêndios teus, juro, chego antes dos bombeiros, quase junto da misteriosa fumaça dos efeitos especiais que faz de Deus um super-herói de todas as minhas causas infantis.
Sei dos teus desamparos por telepatia, jamais por WhatsApp, soubeste dos meus desnortes antes de cair a última ficha do bye-bye Brasil... Decerto nunca dependemos de Graham-Bell ou de wi-fi para gerenciar nossa troca de incríveis transas e insultos mútuos, amém.
Nem que tu me digas: agora é tarde, nem que passes nas minhas brancas barbas que outros homens te amaram bem mais no free-jazz que nas minhas repetitivas redondilhas, nem que esfregues nas minhas residentes rugas as perdidas chances que eu tive de assumir o romance e necas de pitibiribas.
E que o Chico nos permita uma chinfra — antes do chifre — do compadre Wilson das Neves, em parceria com o igualmente gênio Nei Lopes, um sample de luxo nessa crônica: quando você não se quiser mais, nega, permita a minha total e irrestrita possessividade.
Lembra-te, minha nega polaca, estamos aqui na margem esquerda do Perequê-Açu, Paraty, e escuto a cantiga inédita do xará Buarque, que beleza, que trovador do miocárdio, donde faço esse diálogo imaginário de Franciscos cujas batinas líricas ouvem os mesmos passarinhos da solidariedade política.
E lá da outra margem do rio, na Flip, escuto agora um “Fora Temer”, o mesmo que a gente já sussurrava de nascença na real-politik, nega, mas vale muito e sempre, ouviram esse grito? Silêncio no auditório, minha gente, esquece, jamais cobrarei aos paneleiros. Que o teflon da consciência um dia vença a validade. Ouviram do Ipiranga? Por quem dobram as panelas? Talvez por quem agora faz fila no posto de gasolina.
Lembra-te, leitora, que toda canção de amor desesperada vale a pena, mesmo que a nega ou o nego nem tenham lido o Neruda.
E que a gente resolva tudo isso agora, para que uma certa cornitude espírita seu passado o espera! — não nos persiga por mais tempo no calendário riscado de xis a cada dia, cada semana, cada mês, cada ano, tal qual um prisioneiro marca na parede os dias que lhe faltam para uma improvável liberdade. Viver não é cool, viver é um Carandiru com um carcereiro mais enfezado que Jean-Paul Sartre.
Que tu não te lembres de nada, mas foram tantas promessas, coisinhas miúdas que desgastam, ave palavra, ave nega, tomara que o fósforo ingerido na infância, o fósforo da casca do ovo, não tenha significado naturalmente uma boa memória.
Quando te der saudade de mim, que tu te lembres que estou tão “pertim”, que talvez eu já seja um puxadinho de ti, uma meia-água, uma latada, quem sabe uma palhoça, uma laje que virou obra inacabada depois do sonho na economia do Governo Lula, uma carne e unha que confunde anatomia com arquitetura, essas coisas...
Lembra-te, minha nega, hoje tem música nova do Chico e isso é para celebrar, como nunca, a ideia de estarmos vivos e no jogo.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “A pátria em sandálias da humildade” (editora Realejo, 2017), entre outros livros. Comentarista dos programas “Papo de Segunda” (GNT) e “Redação Sportv”.
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