_
_
_
_
_

Rumo ao infinito

Grande sucesso dos Jogos Olímpicos de 92, bem acima do esperado, acabou com os complexos do país e lançou os atletas espanhóis ao melhor momento de sua história

José Sámano
Antonio Rebollo acende a pira olímpica em Barcelona 92.
Antonio Rebollo acende a pira olímpica em Barcelona 92.Cordon Press

“A la ville de...”. De maneira nenhuma alguém poderia suspeitar que aquelas célebres palavras pronunciadas por Juan Antonio Samaranch em 17 de outubro de 1986 antecipariam a consolidação da Espanha como um país moderno e aberto. E não só política e socialmente. O esporte serviria como ligação seis anos depois. O sucesso organizativo e esportivo dos Jogos Olímpicos de Barcelona 92 ficou muito acima do prognosticado pelos mais otimistas. Em um país diminuído e complexado após quase 40 anos em um quarto escuro, aqueles Jogos permitiram que ele espantasse os fantasmas. A B-92 resgatou a Espanha de seu terceiro-mundismo e a aproximou de seu entorno europeu.

Mais informações
O cemitério do Barcelona pode ir para o túmulo
Se você viesse ao Rio passaria por um Parque Olímpico abandonado

Existiam razões de peso para que os espanhóis temessem um papel ridículo nos Jogos catalães. Quatro anos antes de Samaranch ler a papeleta, a Espanha organizou uma Copa do Mundo de futebol recheada de pessimismo crônico, com uma seleção tão superada nos gramados como os diretores do evento em seus escritórios. No estritamente esportivo, a história olímpica espanhola era terra a ser semeada: desde 1900, 26 medalhas em 16 edições das Olimpíadas. Um estudo interno da organização da B-92 colocou o prognóstico no alto. Eram previstas 12 medalhas à Espanha, o triplo das conseguidas em Seul 88. O que parecia uma utopia se tornou uma previsão modesta. A colheita explodiu em 22 pódios, algo impensável, extraterrestre.

Com um orçamento de 154 bilhões de pesetas (3,4 bilhões de reais), Barcelona não só enfrentou um desafio maiúsculo para os atletas nacionais, como precisou organizar os Jogos da reconciliação e os primeiros do gigantismo. Em 1992 a África do Sul reapareceu após a queda das leis do apartheid, a Alemanha e o Iêmen desfilaram com equipes reunificadas, a Namíbia, Letônia, Estônia e a Lituânia disputaram como independentes, a desmembrada União Soviética exibiu a bandeira branca dos cinco aros e a Croácia, Eslovênia e a Bósnia competiram como países livres após a decomposição da Iugoslávia. Participaram 169 países, 10 a mais do que em Seul 88, com um total de 9.370 atletas. E não podemos nos esquecer do número extraordinário de 35.000 voluntários (mais 15.000 nos Paralímpicos), sinal do fabuloso apelo popular do acontecimento.

A nova ordem olímpica imposta por Samaranch aumentou o mercantilismo. E como símbolo o Dream Team da NBA, que até então ignorava o olimpismo. As doze superestrelas convocadas à competição, com Magic, Bird e Jordan à frente, tinham à época salários que somados superavam com folga os 5 bilhões de pesetas, metade do que custou a preparação de 900 atletas espanhóis durante os oito anos anteriores a B-92. Se a cidade de Barcelona aproveitou o acontecimento para tirar do armário diversos projetos que estavam empoeirados, o esporte espanhol conseguiu pela primeira vez uma bela injeção financeira com o plano ADO (Associação de Esportes Olímpicos) de ajuda aos atletas de elite criado em 1988. Até a B-92 foram disponibilizados 12,5 bilhões de pesetas, o que permitiu que os atletas pudessem centrar-se exclusivamente em seu treinamento e sua preparação fosse muito mais bem-feita.

Apoiados como nunca, mas com uma exigência dos patrocinadores: resultados. E eles vieram. Entre 25 de julho e 9 de agosto se multiplicaram as explosões de júbilo. Em cada esquina, a qualquer hora, na modalidade mais inusitada, vinha uma medalha espanhola (13 ouros, sete pratas e dois bronzes). O futebol foi campeão, mas sua monocultura chegou ao fim com conquistas no atletismo, boxe, ciclismo, ginástica rítmica, hóquei na grama, judô, natação, tênis, tiro com arco, vela e polo aquático. De repente, o espanholzinho da vez era capaz de competir no mais alto nível. De repente, os alemães não mediam mais sete corpos e os norte-americanos não tinham mais quatro pés. A Espanha inteira esfregou os olhos sem parar durante 15 dias. No caminho, os mecenas, públicos e privados, perceberam o enorme retorno do esporte como aríete publicitário. Hoje, 25 anos depois, a Marca Espanha é referência.

Sem o menor desmerecimento a ninguém, duas datas ficaram marcadas na história do esporte espanhol. Em 31 de julho, a judoca Miriam Blasco realizou um feito duplo para a eternidade. De uma só vez ela se transformou na primeira espanhola a ganhar uma medalha nas Olimpíadas de verão (cinco meses antes Blanca Fernández Ochoa conquistou um bronze nos Jogos de Inverno de Albertville) e, claro, a primeira com um ouro. Blasco derrubou uma barreira que permitiu o fabuloso voo do esporte feminino. Vale colocar uma referência. Até os Jogos barceloneses, 92 mulheres foram atletas olímpicas. Desde aqueles jogos (127) até hoje 700 já participaram. Nas Olimpíadas do Rio 2016, as mulheres representaram 48% da delegação e conquistaram nove das 17 medalhas. Quatro anos antes, em Londres, foram responsáveis por 11 das 17.

Cacho e o futebol

Em 8 de agosto, um dia antes do encerramento, ocorreram dois momentos imortais. Fermín Cacho conquistou o ouro nos 1.500 metros e, de alguma forma, sua celebérrima passagem pela linha de chegada se transformou no pôster espanhol dos Jogos. Horas depois, com o Camp Nou lotado, veio o delírio com a vitória da seleção espanhola de futebol, com Kiko descontrolado de alegria, o eufórico barcelonês Pep Guardiola e tantos outros. Algo impensável hoje em dia, como seria inconcebível na atualidade a despolitização de um evento como a B-92. Naqueles Jogos, sem um único incidente, todos os lados andaram na mesma direção.

Cacho e o futebol foram o encerramento de uma Olimpíada fantástica, para a Espanha e o resto do universo. A profissionalização olímpica foi homologada, o cofre dos patrocinadores ficou abarrotado e as televisões passaram a ser o grande sustento dos Jogos. Para a Espanha significou a decolagem infinita do esporte. Em Barcelona toda a caspa foi sacudida e foram colocados os pilares para que hoje a Marca Espanha vá de evento em evento.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_