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O cemitério do Barcelona pode ir para o túmulo

Justiça espanhola investiga desvio de dinheiro em empreendimento que abrigaria torcedores do clube

Jesús García Bueno
O cemitério de Les Corts com o Camp Nou ao fundo, em Barcelona.
O cemitério de Les Corts com o Camp Nou ao fundo, em Barcelona.CARLES RIBAS
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Seria o grande salto para frente. A instalação de nichos para torcedores de times de futebol tinha dado certo em estádios de clubes da Primeira Divisão - Betis, Espanyol, Atlético de Madrid -, mas, para o Barcelona, era bem mais do que isso: um negócio de 90 milhões de euros (306 milhões de reais) e o caminho para internacionalizar os columbários. O empresário Santi Bach, articulador dessa comunhão entre futebol e morte, tentara vender a ideia ao Manchester City, ao Corinthians... Mas, enquanto ele supostamente esvaziava os cofres da própria empresa, o projeto do Camp Nou empacou, deixando sócios e investidores na mão e empurrando o Barcelona para uma nova frente judicial.

A história do natimorto Espaço Memorial FC Barcelona é uma sucessão de absurdos, depositada agora sobre a mesa de dois juízes de instrução. Bach, administrador e líder da Giem Sports, fez contato com Enric Alavedra, cunhado de Antoni Freixa, na época secretário da diretoria e porta-voz do clube. Freixa levou para o Barcelona a ideia do negócio de Bach: criar um espaço em uma área lateral do Camp Nou para abrigar milhares de urnas funerárias.

O ex-diretor afirma que se limitou a fazer a ponte entre os lados. Mas a investigação em curso - solicitada pelos investidores, que não recuperaram o seu dinheiro - revelou um suposto conflito de interesse. Entre 2011 (quando a ideia começou a circular pelos corredores do clube) e maio de 2015 (quando Bach, pressionado pelos sócios, foi obrigado a deixar a Giem Sports), Freixa recebeu 200.000 euros (660.000 reais) da empresa. Por meio de notas frias de valor idêntico. O ex-diretor alega que foram pagamentos por serviços de “assessoria jurídica”. Mas uma testemunha, a ex-diretora financeira da empresa, o desmentiu e disse que se tratava de “comissões por ter obtido o contrato com o Barça”.

O projeto já nasceu, portanto, contaminado, embora quase ninguém soubesse dessas relações quando Freixa o apresentou para a imprensa, em 2012. O estádio acolheria 30.000 urnas funerárias para atender a uma “demanda histórica” –Freixa dixit—de sócios e familiares de jogadores, que almejavam descansar eternamente em território azul-grená. Por contrato, o clube cedeu a uma filial constituída especialmente para isso (Espai Memorial Barcelonista) a construção, exploração e gestão do espaço. Em troca, embolsaria seis milhões de euros. Todos estavam felizes. E com um adicional: uma comissão de 5% para o clube nas vendas feitas no exterior.

O City quase entrara nesse negócio também, mas abandonou a ideia quando Bach lhe pediu, de cara, três milhões de libras.

O empresário precisava de dinheiro para construir o memorial do Barcelona. Obteve-o com os sócios capitalistas da Giem Sports e com cerca de vinte investidores da cidade de Terrassa. “Ele tinha uma lábia incrível. Podia convencer você de qualquer coisa”, conta um dos que lhe confiaram suas poupanças. Os investidores sabiam que a iniciativa tinha o respaldo do clube –o escudo do Barça estava sempre presente— e compraram “pacotes” de columbários na expectativa de vendê-los mais adiante aos “usuários finais”: os mortos ou suas famílias. “Cerca de 1.000 chegaram a ser vendidos”, conta um sócio.

Mas o projeto emperrou. O contrato foi renovado várias vezes, até que o Barcelona e a Giem Sports decidiram instalar um “espaço provisório” para abrigar as cinzas (no cemitério de Les Corts) e deixar o columbário definitivo para o momento em que se fizesse a reforma do estádio: grandes murais que comporão uma espécie de “viagem pela história sentimental do Barça”, como anunciou o clube em janeiro de 2014. Nesse meio tempo, a empresa faliu. Sócios e investidores não tiveram o seu dinheiro de volta, e, em 2015, processaram Bach.

O cemitério de Les Corts, em Barcelona. Ao fundo, o Camp Nou.
O cemitério de Les Corts, em Barcelona. Ao fundo, o Camp Nou.Carles Ribas (EL PAÍS)

Os sentimentos

Os documentos mostram, até o momento, que Bach desviou, supostamente, um milhão de euros (3,3 milhões de reais) para sua conta; e que usou dinheiro da empresa para adquirir um automóvel e um chalé. O juiz o convocou duas vezes, para informá-lo formalmente de seu indiciamento. Ele não compareceu. Com Bach fora do jogo, os investidores se voltaram para o Barcelona, cobrando por sua responsabilidade na gestão do negócio.

José H., ex-sócio de Bach, destravou a situação. Ele conseguiu fazer com que um juiz convocasse o Barcelona como parte investigada; no caso, seu presidente, Josep Maria Bartomeu (por ter assinado a renovação contratual mais recente, em 2014), e Freixa. Ele os acusa de terem dado um golpe. Seu argumento é fácil de entender: o clube sabia que o projeto não tinha como ser concretizado, mas, mesmo assim, manteve o contrato em vigor, recebendo até mesmo um depósito de um milhão de euros. Sua ação se apoia em um ofício da Prefeitura de Barcelona de março de 2013 em que se responde ao clube que o Camp Nou é classificado como equipamento desportivo e que, portanto, seria “incompatível” com uma utilização de alguma área sua como espaço funerário.

O clube se diz “prejudicado” no caso por ter sido envolvido em um conflito judicial pelo “uso indevido da marca” Barcelona. Mas também porque se ver fraudado em suas expectativas no negócio, cuja gestão “era de responsabilidade da empresa”, segundo alegam fontes do clube.

Quando o indiciamento de Bach veio a público, o clube deu o projeto por encerrado. O site do Espaço Memorial foi desativado. O telefone para adquirir nichos cai em “usuário desconhecido”. Um sócio lamenta o final dessa história: “O que nós vendemos aqui não foi presunto, mas sim nichos. O que está em jogo são sentimentos”. E afirma que o clube terá de encontrar algum lugar no estádio reformado para colocar as cinzas daqueles que já morreram. Ele se refere a Nicolás, Àngel, Romá e Misael. Seus restos mortais estão no cemitério de Les Corts. Solitários e em situação temporária. Mas ao lado do escudo do Barça.

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