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Farmácia de Montevidéu vende maconha em bairro devastado por drogas pesadas

Apesar de seu moderno programa de legalização, Uruguai patina nas políticas de combate ao narcotráfico

Funcionária de uma farmácia de Montevidéu vende dois pacotes de cannabis
Funcionária de uma farmácia de Montevidéu vende dois pacotes de cannabisMatilde Campodonico (AP)

A legalização da maconha colocou a modesta farmácia Pitágoras, no bairro Malvín Norte, num lugar de destaque do mapa de Montevidéu. É uma das quatro farmácias que aceitaram vender a maconha legal cultivada em terrenos controlados pelo Estado. Longe das redes que dominam o mercado, situadas nas zonas estratégicas, com enormes vitrines exibindo marcas internacionais, a farmácia Pitágoras tem dimensões pequenas, mas é moderna e cheia de produtos. Seu dono, Esteban Riveira, é hoje mais famoso que um astro de rock.

Como as demais farmácias da capital uruguaia, os envelopes de maconha acabaram rapidamente na quarta-feira, primeiro dia de venda. Cada estabelecimento pode estocar até dois quilos da substância, o equivalente a 400 envelopes. Ao meio-dia, porém, já não havia nenhum na Pitágoras.

Fila numa das 16 farmácias que vendem maconha legal no Uruguai
Fila numa das 16 farmácias que vendem maconha legal no UruguaiANDRES STAPFF (REUTERS)

Malvín Norte é um bairro humilde em uma zona abastada e residencial. Montevidéu está cortada ao meio pela Avenida Italia, em função da proximidade com “la rambla”, a longa avenida de 23 quilômetros que se estende pela costa. Quanto mais perto você está do Rio da Prata e de seu magnífico espetáculo, mais cara é a zona. A farmácia Pitágoras fica a vários quarteirões desse rio tão largo que é chamado de mar no Uruguai, mas não deixa de ser a única farmácia que vende maconha na extensa zona leste de Montevidéu, onde estão os melhores bairros da capital.

Uma vendedora da Pitágoras explica que a farmácia pediu mais maconha para o estoque, mas até agora não teve notícias do produto. Atualmente há uma greve geral dos transportes devido a um conflito salarial com o Governo. Embora a greve não necessariamente tenha um impacto no abastecimento, talvez tudo esteja atrasado, diz a funcionaria. Se os organismos encarregados da administração da droga legal forem tão eficazes como os demais serviços públicos uruguaios, será preciso esperar bastante. De fato, a rede ficou sem sistema várias vezes ontem, e o leitor de impressões digitais funciona mal. O aparelho serve para que os compradores, que devem estar inscritos num registro, possam se identificar e ter acesso aos envelopes de quatro gramas disponíveis para a venda.

E na verdade não é preciso estar no mercado, pois fora dele estão os competidores, as chamadas “bocas” de venda de drogas ilegais. Elas oferecem o “prensado paraguaio”, que contém maconha e um pouco de tudo. Os moradores de Malvín Norte sabem o que são as drogas e seus danos. Além disso, o Uruguai é o país mais seguro da América Latina. Mas essa zona de casas baixas, com alguns edifícios grandes (em geral deteriorados) já registrou assassinatos e cruéis ajustes de contas por causa do narcotráfico.

O prensado paraguaio, por pior que seja, é fichinha se comparado à pasta-base, um resíduo da cocaína produzido no Peru, na Bolívia e na Colômbia que foi introduzido no Uruguai no início de 2000 e causou estrago. É a droga dos pobres, vendida em pequenos pacotes, como se fosse bala, por 30, 60 ou 100 pesos a dose (de 3,50 a 7,50 reais). O problema é que a pasta bate forte e logo deixa a pessoa com a necessidade imperiosa de conseguir mais.

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Enquanto a Cannabis indica faz você planar e a sativa te deixa no grau, a pasta-base produz uma viagem violenta e eufórica. O pouso da maconha legal é suave, sem dores de cabeça, mas com a pasta-base a pessoa chega muito rápido ao momento de tristeza e ansiedade. Perto da farmácia Pitágoras ocorreram inúmeros ajustes de contas e várias operações de “saturação” – como é conhecido o desembarque em massa de policiais numa zona para deter e inspecionar meio bairro.

Em Malvín Norte, todos conhecem os capos locais: a família Luna. Andrea, de 33 anos, indica discreta que eles estão por lá, atrás de um conjunto de casas vizinhas. Um grupo de senhoras idosas se reúne no Centro Cultural de Malvín Norte, aproveitando a luz do dia para sair porque a noite pertence aos pastabaseros. Algumas conhecem viciados que tentaram se reabilitar. Denunciam a falta de resposta do poder público e o avanço dos centros de internação dirigidos por pastores evangélicos.

O bairro está tranquilo, quase vazio. Mas se o jornalista faz muitas perguntas sobre os Luna, aparece um senhor muito gentil e te explica que todo mundo já sabe que você está procurando problemas. E, do fundo do coração, te recomenda a ir embora por questão de segurança.

O Uruguai, um país exemplar que chama a atenção do mundo com seu programa de legalização, vem usando outros métodos para combater as drogas: o encarceramento em massa de criminosos e o endurecimento progressivo de seu código penal. Em 2017 o país bateu todos os recordes, com 341 presos para cada 100.000 habitantes – uma das taxas mais altas do mundo.

Os organismos internacionais denunciam o confinamento nos presídios e a falta de políticas de reabilitação para os dependentes. Mas as coisas mudam de forma lenta. Mesmo com o ex-presidente José Mujica, que viveu as piores experiências nos porões da tortura, a situação não melhorou.

A batalha entre o Estado uruguaio e os narcos não é um tema menor. De algum modo, a farmácia Pitágoras é um quartel-general pró-narcóticos rodeado de traficantes. E, até o momento, acabaram os envelopes de maconha legal.

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