_
_
_
_
_

Você não é um indivíduo, mas sim uma multidão

Livro mostra o poder gigantesco dos milhões de micro-organismos que fazem parte de nós

Javier Salas
Multidão participa do festival de Glastonbury.
Multidão participa do festival de Glastonbury.NIGEL RODDIS
Mais informações
Os vírus que melhoram a sua saúde
Fazendas amish escondem segredo da asma infantil
O ‘superantibiótico’ escondido no nariz
O bichinho que desafia Deus

Se resumíssemos a história do planeta em um ano, nós, humanos, surgiríamos poucos minutos antes da meia-noite de 31 de dezembro. Mas a vida surgiu em março. E o fez sob a forma de seres com apenas uma célula, que ocuparam sozinhos a Terra até outubro, momento em que seres pluricelulares começaram a aparecer. Os micróbios estão em todas as partes e existem em quantidades astronômicas: “Há mais bactérias nas suas tripas do que estrelas em nossa galáxia”, resume o jornalista científico Ed Yong nas primeiras páginas de seu livro I contain multitudes [Contenho multidões]. E acrescenta: “Os cálculos mais recentes sugerem que temos cerca de 30 bilhões de células humanas e 39 bilhões de células de micróbios, praticamente um empate. Mesmo que os números não sejam muito precisos, não importa: de qualquer ponto de vista, nós contemos multidões dentro de nós”.

Ao descrever como o nosso corpo é formado por complexos e independentes reinos de micróbios, com seus ecossistemas e suas leis, Yong explica que a nossa mão direita compartilha apenas um sexto de espécies com a nossa mão esquerda: “Falando de forma simplificada, as bactérias do seu antebraço são mais parecidas com as do meu antebraço do que com as da sua boca”. Somos ricos em micróbios, à exceção do rosto, um ponto do corpo onde os cosméticos estão destruindo o ecossistema natural, segundo explica o livro, cujo título resgata um famoso verso de Walt Whitman em seu Canto de mim mesmo. Mas o ecossistema dos micro-organismos é por nós renovado permanentemente: por exemplo, a cada grama de comida que comemos ingerimos um milhão de micróbios. E cada pessoa libera 37 milhões de bactérias por hora, formando em torno de si verdadeiras auras vivas que permitem identificá-la quase com tanta precisão quanto o seu DNA.

Temos cerca de 30 bilhões de células humanas e 39 bilhões de células de micróbios, praticamente um empate. De qualquer ponto de vista, contemos multidões dentro de nós

Isso tudo leva a uma pergunta fundamental do livro: “Sabendo o que sabemos, será mesmo possível definir um indivíduo?” Nossos micróbios residentes nos ajudam a construir o nosso próprio sistema imunológico, que, em troca, aprende a tolerá-los. “Está claro que os micróbios alteram a nossa noção de individualidade. Elas fazem parte dela também. O seu genoma é praticamente igual ao meu, mas os nossos micróbios podem ser muito diferentes. Talvez não seja que eu tenho multidões dentro de mim, mas sim que eu sou multidões”, afirma o jornalista, responsável pela coluna de ciência da revista The Atlantic.

A imagem que costumamos ter dos micróbios, de maneira geral, é de que são ameaças a serem combatidas, germes que transmitem doenças, e normalmente utilizamos até mesmo uma linguagem belicista para falar de nossa relação com eles. E isso, apesar do fato de que apenas uma centena de bactérias serem prejudiciais, ante os milhares que são inócuos e até mesmo necessários para o nosso organismo. “Os micróbios são importantes. Nós os temos ignorado. Nós os tememos e odiamos. Chegou a hora de valorizá-los”, acrescenta o próprio Yong, numa espécie de declaração de intenções, no início do livro.

Bill Gates recomenda o livro porque ele traz uma grande mudança na forma de ver e de aproveitar o conhecimento sobre os micróbios

Mais adiante, ele fala sobre como a medicina pode utilizar o conhecimento das complexidades e os benefícios que esses seres microscópicos podem proporcionar: “Eles não são os inimigos dos animais, mas sim os alicerces sobre os quais o seu reino se constrói”. A título de exemplo, descreve casos em que se pode matar o parasita que gera uma doença nos humanos acabando com a bactéria da qual esse parasita depende. E é justamente por isso que uma pessoa como Bill Gates, envolvido, com sua fundação, na luta contra as doenças, considera o livro de Yong um dos melhores do ano, pois ele leva a uma mudança na forma de pensar na atividade dos micro-organismos e nas oportunidades que o seu conhecimento traz.

O livro faz uma revisão ampla de todos os casos exemplares que conhecemos sobre a importância dos micróbios nas vidas dos animais e dos seres humanos. Ele se estende bastante relatando, por exemplo, as descobertas proporcionadas pela criação de ratos em ambientes absolutamente acéticos. Quando esses roedores nunca entram em contato com nenhum tipo de vida microbiana, eles se desenvolvem menos, crescem lentamente, geram órgãos e sistemas imunológicos deficientes e se tornam mais suscetíveis ao estresse e às infecções: têm vidas mais breves, mais difíceis e mais frágeis. “Os animais que não contêm germes são, sobretudo, criaturas miseráveis, que parecem necessitar a cada momento de um substituto para os germes dos quais carecem”, diz o bacteriologista Theodor Rosebury. Com esses animais isentos de vida microbiana, os cientistas conseguiram estudar detalhadamente os efeitos que os micro-organismos têm no comportamento do organismo: ao transplantar as bactérias das tripas de um rato com sintomas depressivos, se transplantam junto com elas a depressão, as tendências à obesidade, ou elas simplesmente ajudam a que se ativem determinados genes envolvidos no seu desenvolvimento: “Fica claro que os micróbios não são meros passageiros; às vezes, são eles que assumem o volante”.

Está claro que os micróbios alteram a nossa noção de individualidade. Eles também a constituem. Talvez não seja bem que eu tenho multidões dentro de mim, mas que eu sou multidões

Yong dá inúmeros exemplos, como a lula que esculpe o seu corpo em função das bactérias que adquire para poder se camuflar, vermes que precisam de bactérias para se tornar adultos, a origem do odor com que os animais se relacionam, para não falar de todos os aspectos nos quais eles influem positivamente na vida humana. “Elas afetam o armazenamento de gorduras. Ajudam a repor os revestimentos do intestino e a pele, substituindo células estragadas ou mortas por outras novas. Garantem a inviolabilidade da barreira sangue-cérebro”, enumera Yong. E, obviamente, azeitam o nosso sistema imunológico, desde o próprio parto, em que as mães nos protegem com os micróbios de seu canal vaginal e, por meio do leite materno, que carrega com vírus e bactérias as baterias das nossas defesas. Yong também detalha as relações que têm sido estabelecidas entre o ecossistema das nossas entranhas e a saúde do cérebro.

Logicamente, a nossa relação com os germes não é idílica. Como explica, no livro, o biólogo evolutivo Toby Kiers: “O microbioma é incrivelmente importante, mas isso não significa que seja harmonioso. Uma aliança quem funciona bem pode se ver facilmente como um caso de exploração recíproca. Simbiose é conflito, um conflito que pode não ser resolvido nunca”. Os animais são seletivos com seus micróbios e os micróbios são seletivos com seus hospedeiros, formando coalizões que duram eternidades, a tal ponto que acabam evoluindo juntos. “Talvez devêssemos pensar neles como uma unidade“, sugere Yong, introduzindo as teorias da prestigiada bióloga Lynn Margulis, para quem essas relações com o mundo microscópico poderiam ser o verdadeiro motor da evolução das espécies.

Os ratos que nunca tiveram contato com micróbios se desenvolvem menos e pior: têm vidas mais breves, mais difíceis e mais frágeis

Houve na década de 1670 um homem que se aproximou pela primeira vez deste universo: o holandês Anton van Leeuwenhoek, que desenvolveu o microscópio para se tornar a primeira pessoa a ver os protozoários que dançavam nas águas de um lago. Ao longo de suas pesquisas com esse microscópio, “quase tudo o que ele viu foi visto por um humano pela primeira vez”, conta Yong. Com seu livro, este jornalista científico nos leva a nos aproximarmos desse universo fascinante que continua a ser descoberto 350 anos depois. Um mundo que, admite ele, levou-o a ver com outros olhos as cidades, as correntes dos rios ou uma saudação com a mão entre duas pessoas. “Como disse o paleontólogo Andrew Knoll, ‘os animais são a cereja da evolução, mas as bactérias são o bolo sobre o qual elas são colocadas’”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_