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Pedra de toque
Coluna
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Esse obstinado Don Juan

Juan Goytisolo e eu acreditávamos que a literatura podia empurrar a história rumo ao socialismo sem render-se ao stalinismo

Mario Vargas Llosa
Juan Goytisolo em 1976.
Juan Goytisolo em 1976.Antonio Gabriel

Ocorreu no início dos anos sessenta, em Paris, quando eu e Juan Goytisolo nos víamos de vez em quando. Não sei como chegou às minhas mãos aquela revista do regime, com um ótimo artigo na primeira página, Esse Obstinado Don Juan, acusando-o de atiçar todas as conspirações que se tramavam na França contra a Espanha de Franco. Levei o artigo e o lemos juntos em um bistrô de Saint Germain. Poucas vezes voltei a vê-lo tão contente, ele, que era geralmente tímido e reservado. Aquela diatribe lhe confirmava que estava na linha certa: a dissidência e a rebeldia já eram sua carteira de identidade.

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Embora ele fosse cinco anos mais velho, tivemos a mesma formação intelectual, marcada pelo existencialismo francês e pela tese de Sartre sobre o compromisso; sim, escrever era agir, a literatura podia empurrar a história rumo ao socialismo sem por isso render-se ao stalinismo, como (queríamos acreditar) estava fazendo a revolução cubana. Seus primeiros romances, os melhores que escreveu, Juegos de Manos, Duelo en el Paraíso, Fiestas, La Resaca, La Isla, mostravam um realismo voluntarioso, transparente, bem trabalhado, e uma intenção crítica que acertava o alvo. Depois, na segunda metade dos anos sessenta, contagiado pelas teorias de Roland Barthes e congêneres que dissecariam a literatura francesa da época, decidiu mudar brutalmente de forma e conteúdo. Em Señas de Identidad, Reivindicação do Conde Julião, Juan Sin Tierra, Makbara e outros livros, tentou se reinventar literariamente, ensaiando uma prosa rebuscada e litúrgica, de frases longas e estruturas gasosas, nas quais as incertas histórias pareciam pretextos para uma retórica sem vida. Acredito que se equivocou, e é provável que, desses livros impossíveis, só reste a memória das imprecações contra a Espanha, recorrentes e mal-humoradas.

O ódio de Juan contra a Espanha era muito parecido com o amor; apesar de suas vociferações contra o país onde nasceu e do qual se exilou durante grande parte de sua vida, acompanhava o dia a dia de suas circunstâncias, seus eventos políticos, suas fofocas literárias, frequentava seus clássicos com amor de erudito, defendia Américo Castro com unhas e dentes contra Claudio Sánchez-Albornoz e resgatava alguns de seus autores esquecidos, como Blanco White, em ensaios esplêndidos. Durante alguns anos, se recusou a acreditar que a Transição houvesse mudado o país e instaurado uma verdadeira democracia; afirmava, com sua característica teimosia, que tudo aquilo era uma frágil aparência sob a qual continuavam mandando os mesmos de sempre.

Felizmente, continuou escrevendo essas reportagens e livros de viagem que havia iniciado com Campos de Níjar, La Chanca e Pueblo en Marcha. Seus relatos e viagens por Sarajevo e os Bálcãs, Turquia, Egito, Palestina, Chechênia eram documentados e ágeis, originais, análises geralmente precisas, embora sempre apaixonadas.

Os melhores livros que escreveu e que serão lidos no futuro como um testemunho excepcional sobre um período particularmente obscurantista da história da Espanha são Coto Vedado (1985) e En los Reinos de Taifa (1986). Corajosos e comoventes, neles revela sua vida secreta, suas pulsões mais íntimas, a difícil descoberta de sua identidade sexual. A homossexualidade é apenas um dos dados que figuram nessa catarse controlada. Há vários outros, entre eles sua fascinação baudelairiana pela sujeira urbana, pelos bairros lúmpen e rufianescos, pelos personagens marginais, malditos, como seu admirado Jean Genet, o ladrão que saqueava alegremente as casas dos esnobes que o convidavam para jantar e ouvi-lo se gabar de suas transgressões. Quem lhe teria dito que o destino consertaria as coisas para que os enterrassem juntos, no cemitério espanhol de Larache, em Marrocos.

Juan Goytisolo foi o primeiro escritor espanhol de sua época a se interessar pela literatura latino-americana, a ler e promover os novos romancistas e, com a ajuda de sua esposa, Monique Lange, que trabalhava na editora Gallimard, tê-los traduzidos ao francês. Foi, também, um dos primeiros a compreender que a literatura em língua espanhola era uma só e a se esforçar para reunir novamente essas duas comunidades de escritores das duas margens do oceano, que a Guerra Civil espanhola havia separado e mantido incomunicáveis. Uma das mentiras que circulavam sobre ele é que, por preconceitos políticos, havia sido uma muralha que freou as traduções de escritores espanhóis na França. Sei que não foi assim, e que, em muitos casos, como o de Camilo José Cela, por quem não podia sentir qualquer simpatia, recorreu às influências que tinha para que fosse traduzido.

Na política, seguimos trajetórias bastante parecidas. Após o grande entusiasmo pela revolução cubana dos primeiros anos, veio a decepção e a ruptura com o caso do poeta Heberto Padilla. Ambos tivemos contato com ele e conhecíamos sua profunda identificação com a revolução; as acusações absurdas do agente da CIA contra ele nos revoltaram e nos levaram a escrever (em meu apartamento em Barcelona, ao lado de Luis Goytisolo, José María Castellet e Hans Magnus Enzensberger) o manifesto que consumaria nossa ruptura com a Cuba castrista e a grande divisão do que parecia, até então, a sólida fraternidade entre os romancistas latino-americanos. Lembro-me daquela época, que foi a da revista Libre (que ele incentivou e era financiada por Albina du Boisrouvray), dos manifestos incansáveis e das conspirações incessantes, como um jogo infantil jogado por nós, os adultos, sem percebermos que tudo o que fazíamos não era grande coisa, pois as decisões realmente importantes eram tomadas muito longe de nós, nesse coração do poder político ao qual os verdadeiros escritores nunca chegam (nem deveriam se aproximar).

Quando Monique morreu e Juan foi morar em Marrakesh, praticamente deixamos de nos ver. Tínhamos reuniões esporádicas, sempre cordiais, e eu continuava a lê-lo, com interesse os seus ensaios literários, e com bastante esforço seus textos criativos. Seus artigos no EL PAÍS indicavam que, apesar do passar dos anos, continuava idêntico: combativo, dissonante e arbitrário. Em nossos raros encontros, me animava a ir visitá-lo e me oferecia um passeio inesquecível por sua amada praça Djemaa el Fna, onde se alternavam os contadores de histórias e encantadores de serpentes.

Só depois de sua morte soube da agonia de seus últimos anos, desde que quebrou o fêmur ao cair numa escadaria do café, naquela famosa praça, à qual costumava ir à tarde para ver o sol se afundar nas montanhas azuis; de seu sofrimento físico e de suas dificuldades econômicas. E dos problemas para encontrar um túmulo laico, como ele queria, em um país onde os cemitérios são obrigatoriamente religiosos. Conhecendo-o, penso que este final indisciplinado, enredado e tragicômico não o teria desagradado: de alguma forma, refletia sua maneira contraditória de ser e sua vida traumática e peripatética. Juan, amigo, descanse em paz.

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