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Marcha para Jesus não confia nos políticos e defende respeito aos homossexuais nas escolas

Levantamento durante evento evangélico em São Paulo mostra matizes em discurso sobre gênero

Marina Rossi

Todos os anos, milhares de fiéis se reúnem em São Paulo no dia do feriado de Corpus Christi para celebrar a fé. A chamada Marcha para Jesus, é um evento convocado pela igreja Renascer em Cristo, a terceira maior denominação neopentecostal do país e uma das mais conservadoras entre as evangélicas. Na última edição, que reuniu dois milhões nesta quinta-feira segundo os organizadores (não houve estimativa da polícia), foi realizado um levantamento inédito que mostra o perfil dos participantes da evento. E, ao contrário do que poderia apontar o senso comum, as opiniões desses fiéis têm mais matizes com respeito à questão de gênero e de direitos das minorias LGBT do que o alinhamento fechado da influente bancada evangélica no Congresso, composta por 75 deputados federais e três senadores.

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Com base em 484 entrevistas e com margem de erro de 4,5%, o estudo coordenado por professores da USP e da Unifesp apontou que 77% dos entrevistados concordaram com a frase "a escola deveria ensinar a respeitar os gays". Esse posicionamento colide com o forte discurso da bancada evangélica sobre a discussão de gênero e sexualidade nas escolas, por exemplo. Outro ponto que sugere  que a sintonia entre base e parlamentares pode ter falhas é quanto ao apoio às reformas da Previdência e trabalhista e também ao ajuste fiscal, a agenda básica do Governo Michel Temer, que tem apoio da bancada no Legislativo. A maior parte (86%) acha que quem começou a trabalhar cedo, deve se aposentar cedo também, sem que haja uma idade mínima para a aposentadoria, como prevê o projeto. A maioria (91%) não concorda que, mesmo em um momento de crise, é preciso cortar gastos inclusive com a saúde e educação, como pode ser uma consequência da PEC do teto de gastos, aprovada no fim do ano passado.

Para Esther Solano, uma das coordenadoras da pesquisa, essa distância entre os resultados do levantamento e a posição dos parlamentares evangélicos mostra que os participantes da marcha não se sentem definitivamente representados pela bancada evangélica. “Será que eles de fato votam tanto assim nos pastores?”, questiona ela, que dirigiu o levantamento ao lado de Pablo Ortellado e Marcio Moretto.

De fato, pelos números, não parece haver um alinhamento automático ao estilo "voto de cabresto" ou "voto em quem o pastor mandar". A Marcha para Jesus acompanha o movimento geral de crise de representatividade já apontado em pesquisas maiores em outros tipos de manifestações. Nenhum político mencionado pelos pesquisadores, evangélico ou ou não, cai nas graças dos entrevistados. A maioria (76%) disse não se identificar com nenhum deles e 66% não se considera nem de esquerda e nem de direita. Quando os entrevistadores mencionam alguns nomes, o resultado é que não confiam (57%) em Marina Silva (REDE), evangélica. Outros 54% não confiam no pastor Marco Feliciano (PSC). Também não confiam (57%) em Jair Bolsonaro (PSC), o pré-candidato à presidência que se aproximou do partido de base evangélica. O governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB), que é bem próximo da Igreja Católica, não tem a confiança de 61% dos entrevistados. Apesar disso, sua ausência na Marcha deste ano foi criticada. “Alckmin não julga a marcha importante. Se julgasse, estaria aqui”, disse à Folha de S. Paulo, o apóstolo Estevam Hernandes, fundador da Renascer e idealizador da Marcha.

“A baixa confiança nos políticos era algo que já esperávamos, porque a sociedade brasileira como um todo está assim”, explica Pablo Ortellado. “Mas é notável como eles não confiam também nos políticos evangélicos e católicos. Isso mostra que não é verdade que os evangélicos formam um curral eleitoral”. Esther Solano completa: “Uma resposta padrão que ouvimos ao perguntarmos sobre algum político evangélico era que ‘confiamos nele como pastor, mas não como político”.

Lula em baixa e feminismo em alta

Se a rejeição aos políticos evangélicos e cristãos é alta, a desconfiança em relação ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva escala muito mais. Disseram não confiar no petista 84% dos entrevistados.

Esse sentimento de rejeição à classe política é muito equivalente ao detectado nas manifestações promovidas pelos grupos pró-impeachment, afirmam os coordenadores do levantamento. “O preconceito faz com que a opinião ache que eles são conservadores e que o voto é de cabresto”, diz Ortellado. “Mas na realidade isso não se mostra. O perfil é muito parecido com a classe média anti-impeachment”.

Para além dos políticos, as opiniões sobre outras questões levantadas também apontam semelhança com o outro grupo que esteve na Paulista ao longo de 2015 e 2016 pedindo a saída de Dilma Rousseff e apoiando a Operação Lava Jato. “De conservadores, eles são iguais aos verde e amarelos”, diz Solano, ainda que em termos de renda média (três a cinco salários mínimos, entre 2.800 e 4.600 reais) eles sejam mais pobres do que os manifestantes da Paulista. “Ou seja, os evangélicos não me parecem especialmente conservadores. São o comum da sociedade brasileira em geral. O que mais impressionou foi a composição demográfica - renda, escolaridade cor. São muito mais representativos da população brasileira". 

Os coordenadores afirmam que esperavam uma postura também conservadora em pautas morais. “Isso realmente se deu, mas com algumas surpresas”, diz Ortellado. “Afirmações sobre o direito das mulheres, como o direito de usar a roupa que quiser ou transar com quem quiser tiveram alto índice de concordância (76% e 64%). Isso mostra que a pauta feminista se enraizou definitivamente na sociedade”. A média de idade dos entrevistados era 34 anos, pouco mais da metade (55%) eram mulheres. Além disso, 90% discordam que o lugar da mulher é em casa, cuidando da família. A ideia de que a expertise da mulher é no supermercado, como disse mais de uma vez o presidente Michel Temer, não cola nem mesmo no que poderia ser a parcela mais conservadora da sociedade.

O levantamento, que teve apoio da Fundação Friedrich Ebert, ainda mostrou um grupo entre 20% e 30% que concordou com afirmações mais progressistas em temas morais como direito ao aborto (21%), reconhecimento de famílias gays (33%), o direito de dois homens se beijarem em público (35%) e travestis poderem usar o banheiro feminino (19%).

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