_
_
_
_
_

James Comey, o homem que faz tremer os presidentes dos EUA

Humilhado e insultado por Trump, o ex-diretor do FBI decidiu revidar. Esta é a história de um funcionário respeitado e obcecado pela integridade

Jan Martínez Ahrens
O ex-diretor do FBI, James Comey, presta juramento diante do Comitê de Inteligência do Senado.
O ex-diretor do FBI, James Comey, presta juramento diante do Comitê de Inteligência do Senado.JONATHAN ERNST (REUTERS)

11 de março de 2004. O presidente George W. Bush se reúne na sala de jantar particular da Casa Branca com um tipo durão. Sentado em uma cadeira pequena para ele, esse homem de 2,03 metros se recusa a autorizar – por causa da flagrante ilegalidade – o programa de escutas telefônicas indiscriminadas Vento Estelar. Sua assinatura é necessária. Como o procurador-geral estava incapacitado por doença, era ele, seu adjunto, que dirigia o Departamento de Justiça. O vice-presidente, Dick Cheney, já tinha explicado a situação: se não houvesse autorização, morreriam americanos e o sangue correria por sua culpa. Bush, com menos rudeza, repete-lhe o argumento.

Mais informações
Trump ao ex-diretor do FBI: “Preciso de lealdade, espero lealdade”
Trump aproveita atentado de Londres para reivindicar seu veto migratório
Diretor de comunicação de Trump se demite do posto
Trump reforça equipe para conter danos da trama russa

Quando tudo já havia sido dito, lembra o biógrafo Garrett Graff, o procurador olhou para o anfitrião e sem se alterar respondeu: “Como disse Martinho Lutero, aqui estou. Não posso fazer outra coisa”.

Assim é James Brien Comey. O homem que faz tremer presidentes. O mesmo que 13 anos depois de enfrentar Bush e Cheney colocou Donald Trump nas cordas com o seu depoimento ao Comitê de Inteligência do Senado. Só e sem documentos, o destituído diretor do FBI exerceu na última quinta-feira o papel de último guardião da legalidade. Acusou o presidente de mentir e difamar, denunciou as pressões para abandonar a investigação da trama russa, mas principalmente revelou ao mundo o modo de operar do bilionário. As artes obscuras que o presidente lhe mostrou em três reuniões particulares e seis conversas. O próprio Comey, num estilo cinematográfico, relatou-as ao Senado. O presidente nega tudo.

Bush, em primeiro plano, e Cheney.
Bush, em primeiro plano, e Cheney.

27 de janeiro de 2017. Trump o havia chamado para jantar na Casa Branca. Comey achou que mais pessoas viriam. Mas quando chegou, foi conduzido ao Salão Verde e pediram que se sentasse em uma pequena mesa oval. Dois assistentes da Marinha eram as únicas testemunhas. Serviram e desapareceram. Nessa intimidade, o presidente perguntou se ele queria continuar sendo diretor do FBI e lembrou que era um posto que muitos desejavam.

Comey entendeu a mensagem: “Meus instintos me disseram que aquele jantar procurava estabelecer uma relação clientelística. Isso me preocupou muito, dada a independência do FBI. “Para sair do aperto, falou de seu caráter apolítico, mas o comandante-em-chefe insistiu. “Preciso de lealdade. Espero lealdade”.

As cartas ficaram sobre a mesa. “Não me mexi nem falei ou mudei minha expressão facial durante o silêncio constrangedor que se seguiu. Simplesmente olhamos um para o outro”.

Esse foi o começo. Nas horas, semanas e meses seguintes, Trump não parou de pressioná-lo. Sob uma atmosfera sufocante, o diretor do FBI, sempre de acordo com o seu relato, se sentiu sucessivamente “assombrado, confuso, aturdido”. Pediu ajuda ao seu superior, o procurador-geral, e disse que não queria ficar novamente a sós com o presidente. Mas tudo continuou igual, até que no dia 9 de maio foi demitido. Uma medida extraordinária que só havia acontecido uma vez na história do FBI. Para piorar a situação, Trump qualificou-o publicamente de louco e fanfarrão, e seu porta-voz disse que nem no FBI o queriam.

Trump no Salão Oval.
Trump no Salão Oval.

“Trump errou completamente, Comey é um homem capaz de expressar seus sentimentos em voz alta e cativa seus agentes por empatia, mas não um servo; é um procurador experiente e chefe de agentes federais. Não é político. Com ele, insultos e ameaças não funcionam”, diz um alto funcionário de segurança que teve contato com ele na época de Barack Obama e pede para permanecer no anonimato.

Humilhado, Comey mostrou seu lado duro. Aos 56 anos, casado e com cinco filhos, ele não ia deixar ser feito de capacho. Havia lutado contra a máfia, perseguido abusos racistas, investigado o presidente Bill Clinton e encarado Bush. Foi procurador federal em Nova York e procurador-geral adjunto dos Estados Unidos. Sua irretorquível carreira lhe permitiu, apesar de ser eleitor republicano, ser escolhido em 2013 por Barack Obama para dirigir o FBI. “Para ele, a integridade é tudo”, diz seu biógrafo e amigo Garret Graff.

Ele então partiu para o ataque. Como bom agente e grande conhecedor do tabuleiro de Washington, ele tinha tomado nota de todas as conversas que teve com Trump e começou a vazá-las. As detonações sacudiram a Casa Branca. Transformou-se no inimigo número um da presidência. Não era a primeira vez.

James Comey com a família.
James Comey com a família.

Seus maiores problemas sempre nasceram ao lidar com políticos. Nisso se mostrou desajeitado. Sua decisão de reabrir o caso dos e-mails particulares de Hillary Clinton apenas 11 dias antes das eleições para fechá-lo pouco depois, quando o dano estava feito, ainda incomoda as fileiras democratas. Comey argumentou que o fez porque era seu dever. E que escondê-lo teria sido trair a confiança pública. “Às vezes é um pouco escoteiro”, diz um bom conhecedor de Comey.

Essa retidão é uma das suas características. É um homem de pedra; altivo segundo muita gente. Aqueles que o conhecem relacionam essa inflexibilidade aos seus sentimentos religiosos. Apesar de ter nascido em uma família católica irlandesa, logo se tornou evangélico e, influenciado pelo teólogo Reinhold Niebuhr, escreveu sua tese: Os Cristãos na Política. Sob essa luz, o debate entre o poder e a integridade sempre o perseguiu, mas nunca o anulou. Como inimigo, é perigoso. Seus conhecidos lembram que sabe onde leva a arma. E se for necessário a usa. Com Trump foram suas anotações, memorandos que ameaçam abrir um processo de impeachment. Com Bush, o punhal foi outro.

Aconteceu no fim da conversa na sala de jantar particular. Quando o presidente voltou a pedir-lhe que aprovasse a ordem das escutas em massa, Comey inclinou-se e disse: “Se fizer isso, deve saber que o diretor do FBI renunciará hoje mesmo”. Bush, piscou. Ninguém lhe havia dito isso. Mas não demorou a perceber que era o melhor que podia fazer. Diante da crise que se abria a ele, decidiu ceder.

James Comey (à esquerda) e o então diretor do FBI, Robert Mueller, em 2004.
James Comey (à esquerda) e o então diretor do FBI, Robert Mueller, em 2004.

O diretor do FBI naquele tempo era o lendário e implacável Robert Mueller. Amigo e mentor de Comey. O mesmo que agora foi escolhido promotor especial para investigar a trama russa e cujo poder representa a maior ameaça para a presidência de Trump. “Se existe alguém com reputação melhor do que Comey, este é Mueller e isso não vai parar”, diz o alto cargo da segurança. “E que ninguém pense que Comey vai sair de cena. Ele e Mueller trabalharam muitos anos juntos e têm plena confiança mútua”, diz Graff. A Casa Branca, com Comey e Mueller, tem um problema. Eles sabem atirar e não tremem o pulso.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_