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Sou uma mulher transexual… e uma moradora como outra qualquer do meu povoado

Embora algumas pessoas custem a entender, minha experiência no vilarejo é maravilhosa

Sandra de Castro
Sandra de Castro

Sou uma pessoa cinza, anódina e sem importância.

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Moro num vilarejo de 8.000 habitantes. Durante a semana, dou aula particular de piano; no domingo, saio para passear na praia com minhas amigas.

Não bebo álcool e gosto de tocar música nas missas e romarias realizadas no meu povoado.

Sou o contrário do que vem à cabeça quando você pensa numa pessoa transexual.

Porque a imagem da transexualidade esteve, durante muito tempo, ligada à perversão, à noite e à escuridão.

Sei bem disso: quando era apenas uma menina, vi inocentemente uma revista na casa dos meus pais que falava dos transexuais como seres desviados.

Essa foi a primeira vez que li a palavra “transexual”. E ainda não conseguimos nos desvencilhar dessa ideia completamente.

É hora de aprender que @s transexuais somos muito diferentes entre nós, e que, além de nossa condição, cada um@ é um mundo. Tomara que chegue um dia em que não nos julguem como trans... e sejamos valorad@s somente por nossa condição de pessoas.

Tenho a recordação de uma infância mais ou menos feliz em Pontedeume. Durante a infância, os meninos e as meninas não se diferenciam tanto. Se nessa idade você está andando de bicicleta, comendo um sorvete de morando ou correndo pela praia, não existe nada mais.

O problema chega quando as outras meninas começam a desenvolver seus traços sexuais secundários e você não. E quando os moradores da cidade começam a chamar você de “mariquinhas”.

A menina feliz que anda de bicicleta, que come sorvete e corre pela praia de repente se transforma numa pessoa desconcertada, incompreendida, ferida.

A puberdade foi, sem dúvida, minha época mais solitária.

A essa altura, já na faixa dos 50, minha memória só gosta de resgatar cenas afetivas. Por exemplo, quando eu me trancava no banheiro para me depilar com uma gilete que eu mesma havia comprado. Ou quando vestia uma saia, às escondidas, na discoteca do povoado.

Mas evitava a pista de dança e ficava nos lugares mais escuros da boate. É assim que nós, @s transexuais, vivemos durante a puberdade: abandonadas nos cantos mais sombrios.

Aos 17 anos, um pouco asfixiada, fui embora do vilarejo para estudar numa cidade maior, onde entrei em contato com outras pessoas transexuais. Isso ampliou minhas perspectivas, mas o sentimento de autocastração mental não desaparece totalmente.

Para você ter uma ideia, nessa época ainda seguia vigente a lei de vagabundos e meliantes, que previa pena de prisão para homossexuais e transexuais. Já com 20 e poucos anos, falei seriamente com um parente, que me recomendou uma sexóloga. A sexóloga me explicou que minha transexualidade era fruto de um complexo de Édipo. Convenhamos: de sexualidade ela não sabia nada.

Hoje, como digo, prefiro conviver com as recordações mais agradáveis. Talvez seja um mecanismo de proteção, porque dói pensar que jamais recuperarei os anos da puberdade.

Com que direito a sociedade pode roubar de uma menina esses anos tão maravilhosos, tão cheios de surpresa? E, sobretudo depois de tantos anos, por que continuamos permitindo isso?

Há quem diga: “Cidade pequena, inferno grande

E eu digo que felizmente, no meu caso, essa frase não me representa.

Há cinco anos, quando eu tinha 50 e já fazia cinco anos de tratamento hormonal, voltei a morar definitivamente em Pontedeume.

Nos anos anteriores, trabalhando na confecção de aparelhos para deficientes auditivos, percorri bastante a zona rural. E alguns de meus clientes foram testemunhas de minha transição pelo tratamento hormonal. Nenhum deles fez um comentário ruim a meu respeito. Essa experiência me ajudou a não sentir medo quando regressei ao vilarejo.

Não detectei má-fé por parte dos meus vizinhos. Em todo caso, desconhecimento. Algumas pessoas me disseram: “Você devia ter nos contado antes!” Puxa, como se isso fosse fácil. Levei anos até reunir as forças necessárias para me submeter à transição. E também me disseram: “Que sorte você tem por termos te aceitado.” Não, não é uma questão de aceitação, mas de respeito. E ponto.

Embora a maioria me veja como outra moradora qualquer, alguns se negam a me tratar com os pronomes femininos. Na primeira vez, digo a eles que isso não é certo. Na segunda eu insisto que não devem agir assim. Na terceira eles deixam de existir para mim. Acho que tenho direito de exigir certa sensibilidade.

Não é tão difícil compreender que sempre fui uma mulher. Mas algumas pessoas cisgênero (ou seja, aquelas cuja identidade de gênero coincide com o gênero atribuído ao nascer), ao ocuparem uma posição de privilégio, são incapazes de se colocar em outra pele.

É a condição humana: somos seres egoístas e, algumas vezes, só nos propomos certas coisas quando nos afetam pessoalmente.

Seja como for, a relação com meus vizinhos é muito saudável. Sou uma pessoa que fala bastante, e quase todo mundo me corresponde. Também participo de algumas atividades, como o canto coral. E, como dizia, todos os domingos me reúno com meu grupo de amigas para passear. Em suma, uma vida anódina, mas plena.

Muitas pessoas transexuais, durante algumas etapas de suas vidas, apoiam-se mutuamente em associações.

Por exemplo, justo antes de começar minha transição, entrei em contato com a Transexualia, onde conheci a Cris, uma pessoa muito importante para mim. E, depois de assistir a um programa de TV sobre transexualidade, liguei para a Chrysallis – e assim nasceu uma incrível relação pessoal com Natalia e Eva.

Também participei, com uma palestra, das XIX Jornadas de Psicologia e Saúde da Ordem Oficial de Psicologia da Galícia.

Obviamente, não há nenhuma associação de transexuais na minha pequena cidade. Mas isso não me impediu de manter contato com pessoas que atravessaram o mesmo caminho que eu.

Sou uma ativista transexual freelance.

Muitas pessoas transexuais da Galícia visitam minha casa de Pontedeume. Alguns profissionais que conheci na saúde pública, assim como os integrantes das associações, colocam tais pessoas em contato comigo, pois me consideram uma boa referência, e eu as recebo com prazer.

Na maioria das vezes, chegam pais desorientados com filh@s transexuais. Graças a essas visitas, conheci maternidades e paternidades maravilhosas, muito comprometidas com o bem-estar dos seus filhos.

Sei que ficam mais tranquilos ao verem que levo uma vida totalmente normal. E também lhes digo que, por favor, uma vez que suas menin@s tenham concluído a transição, não se esqueçam de educá-las para não perpetuarem os papéis de gênero.

Outras vezes, fui visitada por menores transexuais que precisavam de um pouco de ar. Nesse caso, aflora em mim uma veia um pouco maternal, e lhes conto sobre a importância do conhecimento.

Se aprenderem com seu corpo, sobre si mesmas, sobre aquilo que as rodeia, então terão melhores ferramentas para enfrentar os problemas e desmontar as pessoas reacionárias.

A outra grande ferramenta, infelizmente, é o dinheiro. Ninguém olha feio para uma pessoal transexual que gasta 600 euros num vestido. Se um transexual visita um restaurante de luxo, será recebido como um membro da realeza europeia. Sim, o desprezo pela transexualidade também é classista.

Mas nem todas as minhas visitas são felizes. Já recebi, por exemplo, uma mulher transexual, quase da minha idade, que continua sem dar o passo. Tanto seu contexto familiar como o seu povoado são muito mais opressivos que os meus. Me dói pensar que essa pessoa não se sentirá completa pelo resto dos seus dias.

Tive muita sorte.

Se com o passar dos anos me permiti ser otimista, recriar-me nas boas lembranças, foi porque meu tratamento hormonal foi um sucesso.

Talvez porque sempre fui uma pessoa andrógena, com uma natureza muito feminina, me feminizei muito bem. Onze anos depois de ter iniciado minha transição, os que me veem pela primeira vez se dirigem a mim no feminino.

Minha presença se dilui inclusive nos ambientes mais femininos, como na fila para a mamografia. Também fiz uma transição jurídica e mudei de nome.

Apesar de minha transição ter sido satisfatória, há ocasiões em que me olho no espelho e ainda vejo um menininho que eu era, coibido, atemorizado. Não quero pensar no que passará pela mente dos que não conseguiram dar esse passo de reivindicar a própria natureza.

Como dizia no princípio deste artigo, cada transexual é um mundo. Mas deveríamos nos sentir preocupados com cada um desses mundos. Se o corpo pode se transformar numa prisão, pelo menos que ninguém viva em prisão perpétua.

Texto redigido por Álvaro Llorca a partir de entrevistas com Sandra de Castro.

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