Vá embora, Simeone, vá
A ingratidão com o treinador que nos deu tudo e o absurdo exílio no La Peineta afastam o xamã da tribo
É surpreendente, quando não revoltante, o espírito justiceiro adotado por uns quantos torcedores e gurus do Atlético de Madrid depois do sabá do Bernabéu. Chegaram a pedir a cabeça de Simeone. E devem ter sido estimulados pelo critério de “servir de exemplo” de alguns quantos especialistas clarividentes da crônica esportiva.
Acho oportunista sacrificar Simeone na fogueira do 3 x 0, recriminar seu posicionamento tático, atribuir-lhe a estratégia errática, fazer um inventário dos defeitos da temporada. Inclusive ousar com a ideia de que o ciclo do xamã argentino teria acabado.
Pode ser que tenha. Mas não por esgotamento nem por frustração dele próprio. Mas sim porque ele pode ter se decepcionado com a ingratidão. E porque tem o direito de procurar outro mar depois de nos haver proporcionado o lugar que havíamos perdido no futebol.
Simeone nos devolveu a confiança, o sorriso das segundas-feiras, a reputação na competição internacional, a rotina das viagens ao exterior. Deu-nos um título espanhol. E uma Liga Europa. E duas finais da Champions. E uma Copa ganha contra o Real Madrid no Bernabéu.
O balanço deveria envergonhar quem exige medidas cirúrgicas. Mas deveria envergonhar ainda mais o fato de ignorarem seu mérito de trabalhar com recursos muito mais precários que nossos rivais. Achamos natural, garantido, o hábito de nos instalar na elite futebolística, inclusive quando o futebol virou território de opulência falocrática entre magnatas, sátrapas e oligarcas russos.
E é uma anomalia a presença cotidiana do Atleti na vanguarda dos clubes continentais. Uma extraordinária anomalia – com perdão da redundância – que demonstra o trabalho que Simeone realizou fora do futebol para fortalecer o próprio futebol. Pode ser a psicologia, a tensão. A magia, a superstição. E a fé, e todas as abstrações que o bruxo argentino acrescentou ao caldeirão druida do Calderón até encontrar a fórmula mágica que nos fez ressuscitar, tratar o Real de igual para igual, assustar o Barça.
Simeone pode se permitir ir embora. Ele nos fez ser muito maiores do que realmente éramos. Por isso a questão consiste em averiguar se o Atlético pode permitir a saída de Simeone sem temer que desmoronem a basílica e a religião.
Vai embora, Simeone, vai. O momento é adequado. E não porque sejamos capazes de nos sobrepor ao vazio deixado pelo totem na fogueira da tribo indígena, mas, sim, porque este Atlético de Madrid que o empresariado chinês profanou e que seus dirigentes expropriaram está a caminho de se desnaturalizar e de se corromper no subúrbio de La Peineta.
A torcida fica privada do seu templo. Destrói-se o primeiro vínculo de identificação, a casa. E somos submetidos à demolição do Calderón como se a cena traumática de um bombardeio contra a própria meta pudesse ser mascarada com a promessa de uma espaçonave. Dá vontade de a gente se imolar entre os escombros. E de transformar a partida desta quarta-feira numa alegoria de Massada.
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