As últimas dos Tristes Trópicos
A desgraça que o governo impõe a índios e a trabalhadores faz repensar humanismo e selvageria
Somos ainda humanos o bastante para compreendê-los?
A pergunta-chave de Claude Lévi-Strauss, no seu livro Tristes Trópicos (1955), fez eco sob os céus de Brasília. Se o antropólogo francês, entre o susto e a melancolia, ficou perplexo com o “mundo perdido” dos povos tupi-cavaíba, dos cadiueu, dos bororo e dos nambiquara, ainda na década de 1930, imagina diante da cena desta semana.
Gás de pimenta nos olhos, os índios acampados sem o abrigo da arquitetura modernista de Niemeyer, dispararam meia dúzia de flechas contra as armas pesadas da polícia do Distrito Federal. Nossos cordiais telejornais anunciaram com espalhafato o “confronto”.
Os índios, arre, pareciam atirar cegamente ainda contra os autores das chacinas históricas que praticamente dizimaram todas as tribos. Bateu esse flashback no meu juízo. A covarde guerra perdida contra os fazendeiros e seus capatazes -na versão arcaica ou na modinha agro é pop.
Dizimaram...
E o que falta dizimar, opa, não será problema no momento, como você lê nesta reportagem de Felipe Betim no EL PAÍS BRASIL. A política da Funai do governo Temer e a bancada ruralista estão empenhadas em fazer o serviço completo. Tristes Trópicos. E repare que já não andava nada bem a relação com as demarcações de terras na derradeira gestão petista.
É morrer de bala ou mercúrio dos rios amazônicos, como Davi Kopenawa, líder yanomami, denunciou na ONU e tantos outros líderes alardeiam desde o tempo em que Lévi-Strauss nem fazia ideia do que seria esta terra de Santa Cruz. É morrer de morta morrida ou morte matada.
Os fuzis e as flechas
Estado de chacina permanente. No que deixo aos amigos uma dica de outro livro, digo, livraço, documento necessário para restaurar a memória desse Bananão, como salivaria o gênio Ivan Lessa a esta altura. Falo de “Os fuzis e as flechas : história de sangue e resistência indígena na ditadura” (editora Companhia das Letras), do repórter com erre maiúsculo Rubens Valente, um farejador proustiano sul-matogrossense, gracias Rubens, das maldições esquecidas. Não nos permita morrer esquecidos.
O Brasil oficial faz questão de rasgar essas páginas ou construir versões mentirosas nos livros didáticos. Tipo essa gente do movimento – valha-me Deus! –, Escola sem partido, a mais antiga sala de aula do país. Esse grupelho reaparece agora achando que prega o novo. Vade retro.
E viva minha vó Merandolina, in memoriam, cujos pais eram dos povos Fulni-ôs de Águas Belas, Pernambuco, criada com a família Freire de Lima, minha vozinha que depois correu os sertões e passou roupa e cozinhou, na urgência da hora, para Virgulino Ferreira, o Lampião, minha vozinha nunca teve medo de homem nenhum, destemida, e parou lá no sul do Ceará com um bando de cangaceiros dissidentes, no sítio Ipiranga, Santana do Cariri, que mulher linda.
Com as fábulas indígenas contadas por minha vó, relatos de fazer inveja ao escritor Mia Couto, dormi os melhores sonos infantis de um matuto. A cena dos índios esta semana em Brasília me levaram aos piores pesadelos dos tristes trópicos. Nem o gênio chamado Glauber Rocha, um dos maiores artistas brasileiros de todas as eras e galáxias, imaginaria uma terra tão em transe. Choro lágrimas além do gás pimenta.
De volta a 1917
Com o afrouxamento aloprado nas jornadas de trabalho, um presente da reforma do famigerado governo Temer, os operários deverão suar o uniforme para sobreviver como no Cotonifício Crespi, a fábrica de tecidos do bairro paulistano da Mooca onde teve origem a primeira greve geral do Brasil, há um século, sob o comando dos anarquistas. Isso é que é avanço e modernidade, né?
Cem anos depois, o que me restou do anarco-sindicalismo n´alma, me põe em protesto neste nobre dia que o Brasil para. Somos ainda humanos o bastante para compreendê-los?
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de A Pátria em sandálias da humildade (editora Realejo, 2017). Comentarista dos programas Papo de Segunda e Redação Sportv.
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