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Coluna
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Retrato sem retoque

O sossego dos domingos foi substituído pela música alta dos crentes, pela música alta dos jovens. O silêncio fugiu, assustado, para longe

Marcelo Sayão (EFE)
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Os fatos que vão narrados a seguir ocorreram em uma pequena cidade do interior do Brasil – chamemo-la de X. No começo da década de 1980 nasceu, no extremo leste de X., um conjunto habitacional de casas simples, mas que contava com arruamento, luz elétrica, água encanada, rede de esgoto, asfalto e linhas de ônibus que ligavam o bairro ao centro. Um sonho para as famílias de classe média baixa. Aos poucos, implantou-se um movimentado comércio – botequins, minimercados, salões de barbeiro e cabeleireira –, uma obra imponente da igreja católica e dois ou três modestos edifícios de igrejas evangélicas.

O bairro prosperou rapidamente. Pouco a pouco, as famílias personalizaram as casas, e as árvores, frutíferas e ornamentais, cresceram e embelezaram as quadras. Aos domingos, havia jogos no campo de futebol, cuja pedra-fundamental rezava que ali haveria de ser construído o estádio municipal, o que nunca aconteceu, e os idosos se reuniam na pequena praça para jogar damas ou cartas ou simplesmente para aguardar a hora do almoço conversando sobre antigamente. A paz era perturbada às vezes por distúrbios domésticos ou por confusões entre vizinhos, mas nada que a própria comunidade não resolvesse com diálogo e conselhos.

As coisas mudaram um pouco no começo da década de 1990. A longa crise econômica nacional, que se arrastava desde meados da década de 1980, ampliou-se, provocando o aumento do desemprego e a diminuição da esperança entre os jovens. Já se falava, à boca pequena, da existência de um traficante em um dos cantos do bairro e de pequenos furtos – bicicletas estacionadas na rua, casas esquecidas abertas. Mas ainda podia-se dormir com as janelas escancaradas e acompanhar, sentado na poltrona da sala, a passagem dos vizinhos na calçada por trás do muro baixo.

Com a virada do século, a insegurança se instalou de vez. O traficante do bairro – não o primeiro, mas outro - passeava pelas ruas ostentando sua riqueza (carro, joias, roupas e tênis da moda), fascinando os garotos e as garotas que aspiravam cair em suas graças. Seus asseclas achacavam os comerciantes, cobrando mensalidades para não os assaltar. Os furtos tornaram-se roubos à mão armada: o escuro da noite conspirava contra os moradores. A igreja católica, sempre fechada, perdia espaço, indolente, para o proselitismo pentecostal. Da calçada já não mais avistava-se a fachada das casas.

Há cerca de cinco anos, construiu-se em um morro próximo um novo conjunto habitacional. Assim que as moradias ficaram prontas, um traficante, de um bairro próximo, tomou-as com seu bando, decretando o início de uma guerra por território. Logo, os meninos praticavam roubos à mão armada e as meninas prostituíam-se na praça antes dominada pelos idosos. Os jogos de futebol foram suspensos, porque terminavam sempre em desordem – as escaramuças deixavam feridos e promessas de vingança. Quem pôde, mudou-se – mas a maioria permaneceu entocada em suas casas, agora ilusoriamente protegidas por cercas de arame farpado e alarmes sonoros.

Os ônibus que serviam ao bairro já não trafegam com regularidade depois que a escuridão chega. Os táxis recusam corridas para o bairro. Os vizinhos não se falam mais, acuados pelo medo e governados pela indiferença. Quase todos têm uma história de violência para narrar. O sossego dos domingos – de cadeiras na calçada e cochilo depois do almoço – substituiu-o a música alta dos crentes, a música alta dos jovens. O silêncio fugiu, assustado, para longe, bem longe.

No final do ano passado, a secretaria de educação de X., percebendo que havia um resto de dinheiro em caixa, permitiu, antes que findasse o mandato do prefeito, que as escolas gastassem no que cada uma definiu como prioridade. A escola do bairro investiu na compra de material de limpeza. Nas imediações do Natal, dois irmãos, um de 12 anos, outro de 14, invadiram o local e furtaram tudo: garrafas de detergente, caixas de sabão em pó, frascos de desinfetante, vassouras, rodos, panos de chão. Carregaram para a casa deles, onde, com a ajuda do pai e da mãe, organizaram kits que venderam a dez reais para os próprios moradores do bairro, que evidentemente sabiam da origem obscura do produto. O argumento: Se eu não comprar, meu vizinho compra...

Assim, o Brasil.

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