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Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

O EL PAÍS é um jornal de esquerda?

“O EL PAÍS queria, quer ser e é um jornal que conta as coisas que interessam aos leitores e não se cala sobre as coisas que incomodam o poder”, afirma o fundador do EL PAÍS

Juan Arias
Redação do EL PAÍS na Espanha.
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Há leitores da edição brasileira do EL PAÍS que estranham, e às vezes até mesmo se irritam, quando aparecem informações ou análises que possam parecer críticas à esquerda. E se perguntam se o jornal “será como os outros”. Isso talvez se deva ao fato de que alguns leitores brasileiros que desembarcaram tarde neste jornal desconheçam a sua história.

O EL PAÍS nasceu há 40 anos como o jornal da nova Espanha democrática, após a terrível guerra “incivil” e décadas de ditadura franquista com desprezo aos direitos humanos. Mas não foi à época, nem é agora, um jornal ideológico de esquerda ou de direita. Segundo Juan Luis Cebrián, hoje presidente do Grupo Prisa, que edita o jornal, além de ter sido seu criador e primeiro diretor, recrutador da primeira redação com diversidade e que decidiu a sua linha editorial, o EL PAÍS deveria ser, acima de tudo, um jornal plural. Aos 31 anos, Cebrián queria um diário de referência sobretudo para os jovens, naquele momento crítico em que começava a nascer uma geração com fome de democracia.

Cebrián acaba de recordar isso em sua autobiografia, Primera Página (sem tradução no Brasil), quando escreve: “Queria fazer um jornal de perfil equilibrado e sucinto, um jornal sóbrio, bem escrito, documentado em suas análises e plural em suas opiniões.” E acrescenta que sua ideia foi fazer um periódico “lido e respeitado, tanto pela elite como pelas pessoas comuns, que desempenhasse um papel essencial na formação da opinião pública”.

Um jornal de esquerda? Cebrián respondeu a essa pergunta em 11 de dezembro de 2016 no programa de Jordi Evole, que faz muito sucesso na rede de TV espanhola La Sexta: “O EL PAÍS queria, quer ser e é um jornal que conta as coisas que interessam aos leitores e não se cala sobre as coisas que incomodam o poder”. E explica: “Quando começamos, a esquerda não tinha voz e tomamos a decisão de lhe dar, mas acredito que nunca foi nem deva ser um jornal de esquerda. Alinhou-se com as posições liberais progressistas e defendeu a democracia quando esta não existia.”

Para conseguir que o EL PAÍS fosse um jornal de referência internacional, Cebrián quis colocá-lo na linha das grandes publicações da Europa da época. Assim, foi o primeiro jornal da Espanha a contar com a figura do ombudsman e com um Manual de Estilo, espécie de Constituição interna para os jornalistas que foi adotada por muitos outros jornais de língua espanhola. Seu fundador também desejava que fosse o primeiro jornal da Espanha, e talvez do mundo, cujas primeiras páginas se dedicassem à seção Internacional. Isso porque, como explicou numa conferência em Roma, a Espanha havia vivido 40 anos com as janelas e portas fechadas ao mundo, olhando para o próprio umbigo. Os espanhóis precisavam, antes de mais nada, conhecer o que acontecia em outros rincões. Ainda hoje, o EL PAÍS, com um importante grupo de correspondentes internacionais, valoriza como poucos as informações mundiais.

Uma das figuras de maior prestígio na equipe, a jornalista Soledad Gallego-Díaz, recebeu de Cebrián a oferta de dirigir o jornal quando ele deixou o cargo. Mas acabou recusando. Ela abordou o tema da ideologia numa entrevista à revista Jot Down, em 23 de março de 2012: “O EL PAÍS não é um jornal de esquerda. Nunca foi, ainda que as pessoas tenham pensado nisso em certo momento. É um jornal progressista no âmbito social, mas não um jornal de esquerda. Além disso, nunca pretendeu ser.” Antonio Caño, outra figura histórica do jornal, atual diretor do EL PAÍS global, enfocou o tema em outra entrevista a Jot Down, em 23 de junho de 2014, pouco depois de assumir. “A única coisa que desejo é tirar o jornalismo do debate esquerda-direita. O jornal não pode ser medido por esses parâmetros porque são muito pobres para um meio de comunicação”, disse. E completou: “O EL PAÍS não é um jornal de esquerda. Nem pretendeu ser. É um jornal liberal, progressista, que se conecta com as tendências de modernizar e de conseguir o progresso da sociedade à qual se dirige. Somos socialmente responsáveis e avançados. E gostamos das mudanças... Jornalismo é jornalismo, contar as coisas sem armadilhas.”

Pessoalmente, faz 40 anos que trabalho exclusivamente para este jornal, quase desde a sua fundação. E, durante todo esse tempo, pude comprovar em primeira mão que o EL PAÍS nunca se vinculou com nenhuma ideologia. Sempre foi, e continua sendo, um jornal comprometido com a democracia e a defesa das minorias marginalizadas. Um jornal laico, que sempre defendeu a separação entre a Igreja e o Estado. Liberal na economia, progressista no campo social, crítico em relação aos poderes civis e religiosos, fiel na defesa dos direitos humanos. E, sobretudo, plural em suas ideias. Algo que sempre esteve claro para todos nós, que trabalhamos nele, é que o EL PAÍS é dos leitores. De todos. São eles os seus verdadeiros proprietários. Os jornalistas são apenas os mediadores da notícia.

Em suas memórias, Cebrián também conta como o partido socialista espanhol, PSOE, pretendeu se apoderar do jornal, já que seus eleitores o liam intensamente. “Ficamos quase dois anos sem dirigir a palavra um ao outro”, escreve, referindo-se ao presidente do Governo socialista e seu amigo pessoal, Felipe González. O falecido Jesús de Polanco, primeiro presidente do Grupo Prisa, me contou que, quando o conservador Partido Popular (PP) venceu as eleições na Espanha, em 1996, o novo presidente do Governo, José María Aznar, convidou-o para um almoço no Palácio da Moncloa. No meio da refeição, Polanco perguntou o que o presidente queria dele. Aznar respondeu: “O EL PAÍS.” E Polanco, que tinha um arguto senso de humor, então lhe disse: “Pena que me pede algo que não é meu, pois o jornal é dos leitores.”

Esse foi e continua sendo o maior orgulho, a única ideologia de um jornal que nutriu três gerações e que hoje é lido também por milhões de brasileiros em sua própria, bela e doce língua.

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