Supremo Tribunal obriga May a submeter aplicação do ‘Brexit’ ao Parlamento
Decisão histórica dá aos deputados a possibilidade de corrigir, com emendas, os planos do Governo


Em decisão histórica, que pode complicar as coisas para o Governo de Theresa May, o Supremo Tribunal britânico decidiu na manhã desta terça-feira que a efetivação das negociações para a saída do país da União Europeia terá de ser aprovada pelo Parlamento. A sentença – aprovada com o voto contrário de apenas três dos 11 magistrados e lida pelo presidente da corte às 9h30, horário local – dá aos deputados a possibilidade de emendar e dificultar a aplicação dos planos da primeira-ministra, que preveem um Brexit puro e contundente, que retire totalmente o Reino Unido do mercado único europeu a fim de retomar o controle total sobre a imigração.
O Governo reivindicava o seu direito de usar a prerrogativa real – que permite ao Executivo tomar determinadas decisões em nome da Coroa sem consultar o Parlamento – para recorrer ao artigo 50 do Tratado de Lisboa, que estabelece a abertura de um prazo de dois anos para a efetivação da separação da União Europeia. Mas várias pessoas, encabeçadas pela executiva da City Gina Miller, a quem se somou na segunda instância o Governo autônomo da Escócia, defendem que a negociação do Brexit precisa passar pela aprovação do Parlamento, já que a saída da UE retirará da população uma série de direitos que lhe foram garantidos pelo legislativo. A decisão do Supremo vai nessa direção, reconhecendo, em sua sentença, a vigência da prerrogativa real, mas argumentando que ela não pode ser utilizada para alterar leis, função para a qual o Parlamento é soberano.
À saída do tribunal, o procurador-geral, Jeremy Wright, admitiu que o Governo ficou “decepcionado” com a sentença. “Mas vivemos em um país onde todos, inclusive o Governo, estamos sob o império da lei”, afirmou, acrescentando que o Executivo irá “cumprir” a decisão. Ele chamou a atenção, no entanto, para o fato de que a Justiça não se pronunciou quanto à saída do Reino Unido da UE, algo que “já foi definido em referendo pela população”.
“O povo britânico votou a favor de deixarmos a UE e o Governo vai cumprir essa decisão acionado o artigo 50 antes do fim de março, tal como estava planejado. A decisão de hoje não altera nada disso”, explicou um porta-voz da Downing Street. “É importante lembrar que o Parlamento apoiou a decisão do referendo por uma margem de seis a um e que já indicou sua posição favorável à continuidade do processo de saída conforme o cronograma que estabelecemos. Respeitamos a decisão do Supremo Tribunal e levaremos os nossos próximos passos para o Parlamento em breve”, acrescentou.
“Somente o Parlamento pode garantir direitos para os britânicos e somente o Parlamento pode retirá-los”, argumentou Gina Miller depois do anúncio da sentença. “Não há dúvida de que o Brexit é o tema mais polêmico desta geração, mas esse processo tem caráter legal e não político”, acrescentou Miller, que no ano passado já havia revelado ter recebido ameaças de morte e assédio online em consequência de sua iniciativa. “Fico assustada com o nível de assédio que recebi pessoalmente apenas por ter feito um questionamento legítimo”, disse nesta terça-feira, depois de tomar conhecimento de que a Justiça lhe dera razão mais uma vez.
O Tribunal Superior britânico se pronunciou favoravelmente à ação em primeira instância em 4 de novembro do ano passado, e o Governo recorreu ao Supremo, a mais alta instância do país, que hoje voltou a se posicionar contra ele, agora de forma irrevogável. As reações à decisão de primeira instância revelaram, á época, a profundidade da divisão existente no país desde o dia 23 de junho passado, quando os britânicos decidiram deixar a UE em um referendo (52% contra 48%). “Inimigos do povo”, dizia na capa o jornal Daily Mail, tabloide que encarna a linha mais dura do Brexit, referindo-se aos magistrados que haviam tomado a decisão.
Mas não há dúvida de que a sentença do Supremo, embora o Governo já desse como praticamente certo que ela seria contrária aos seus interesses, constitui uma derrota importante para May. A primeira-ministra deverá, agora, apresentar um projeto de lei a ser submetido à votação no Parlamento. Está prevista para esta terça-feira, ainda, um pronunciamento de David Davis, o ministro encarregado do Brexit, na Câmara dos Comuns, para anunciar os planos do Governo, que, segundo diferentes fontes, preveem a divulgação do projeto de lei até o fim desta semana.
A intenção do Governo, segundo o que foi divulgado por veículos de comunicação britânicos, é redigir um texto o mais curto e neutro possível, para evitar que os deputados possam sobrecarregar o processo legislativo com emendas e garantir assim o cronograma de May, que prometeu acionar o artigo 50 antes do final de março. Mas, de acordo com o jornal The Guardian, nesta manhã de terça-feira, advogados que atuam dentro do Governo desaconselharam a primeira-ministra a produzir um texto excessivamente breve, que poderia abrir as portas para novos questionamentos legais no futuro. Com efeito, a origem da atual batalha legal, como admite Gina Miller, está na redação frágil do projeto de lei original do referendo.
A sentença do Supremo foi anunciada menos de uma semana depois de a primeira-ministra ter apresentado, em Londres, as linhas-mestras de sua visão sobre a ruptura com a UE. May deixou claro que caminha na direção de uma ruptura radical, que deixe o país totalmente fora do mercado único, o maior bloco comercial do planeta, como única forma de retomar o controle sobre as fronteiras e sair da jurisdição do Tribunal Europeu de Justiça. O voto pelo Brexit, na interpretação de May, foi, acima de tudo, um voto pelo resgate do controle da imigração, e esse será o objetivo a guiar o Governo em suas negociações da saída.
A maioria dos deputados se opõe à linha dura de ruptura com a UE defendida por May. Não se espera que utilizem o poder que lhes foi reafirmado hoje pelo Supremo para bloquear totalmente o Brexit, traindo o desejo da população expresso no referendo, mas sim que, ao longo do processo parlamentar, procurem levar o Governo a adotar uma saída menos dramática. O líder do Partido Trabalhista, principal força da oposição, determinou a seu grupo parlamentar que não bloqueie o recurso ao artigo 50. Mas alguns de seus deputados, incluindo membros de seu Gabinete, de forma reservada, avaliam a possibilidade de desafiar essa determinação, o que desencadearia mais um conflito no seio do trabalhismo, que já tem vivido inúmeros outros ao longo desse debate crucial para o país.
A libra esterlina atingiu nesta segunda-feira a sua cotação mais alta do ano em relação ao dólar, antecipando, em parte, a decisão do Supremo divulgada nesta terça-feira pela manhã. Qualquer movimento que se distancie de um Brexit mais duro tende a estimular os mercados. Analistas não descartam novas altas, embora parte do efeito de uma sentença que já era dada quase como certa já tenha sido incorporada.