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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Gastar bem

Um ato de afirmação de identidade de gestão mal planejado e se vão milhões em recursos públicos. Deveria ser proibido gastar mal

NACHO DOCE (REUTERS)
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E o patrimônio cultural?
Brasília abstrata
Só o Rio pode salvar o Brasil

“É proibido gastar” foi a mensagem do empossado prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, em seu primeiro discurso no cargo e que imediatamente sintetizou lema e sina de mais de 5.500 novos alcaides das cidades brasileiras.

A deprimida conjuntura nacional, a sandice internacional e a tristeza política local apontam para gestões municipais que precisarão ser austeras e rigorosas. Conseguirão ser ousadas ou criativas?

Três dias depois, o prefeito da capital fluminense apresenta o novo logotipo da prefeitura e que, de certo modo, passa a ser também a marca da cidade pelos próximos quatro anos.

Novo logotipo apresentado por Crivella.
Novo logotipo apresentado por Crivella.

Novas cores, nova tipografia, nova concepção gráfica para o brasão e pronto, está criada uma marca que identificará a cidade que simboliza o Brasil no mundo.

Desse modo, começa-se a mudar sinalização e a identidade visual de equipamentos públicos, de serviços, veículos, uniformes, cartões de visita, papelaria, envelopes, etc. Tudo, absolutamente tudo que leva o logotipo precisará ser trocado. Mais de mil escolas, centenas de clínicas de saúdes, dezenas de hospitais, espaços culturais.

Alegres ficarão as gráficas e as empresas de letreiros.

Um simples ato de afirmação de identidade de gestão mal planejado e gastamos todos nós milhões em recursos públicos. Deveria ser proibido gastar mal.

Antes que o leitor se exalte, não comete pecado sozinho o novo prefeito. Há oito anos fez-se o mesmo. E há dezesseis, idem. E assim ocorre por todo o país. E também pelo mundo afora. Não nos humilhemos com comparações.

Quando então mudam-se posições ideológicas é aí sim que o dono da empresa de letreiro sorri mais ainda: toma-se a trocar vermelho por azul, verde por amarelo.

Críticos de design temos muitos. Recentemente o filho temporão do presidente Temer manifestou seu apreço pela nova marca do governo federal que emula o “Ordem e Progresso” da bandeira nacional, tentando solenemente dizer algo há 128 anos enquanto balança ao vento.

Triste frase incompleta, sempre à espera do “Amor”. Isso ninguém tem coragem de propor. Talvez algo místico ocorre-se com o tema positivista finalmente completo.

A força do design é tão soberba que uma pequena decisão, ou melhor, uma pequena omissão de projeto, tem impacto transversal em diferentes aspectos da vida cotidiana, das organizações do trabalho, à criação de identidades e a manutenção dos símbolos.

Mesmo com tal supremacia evidente do bom projeto, como modo de comunicar, afagar, acolher, prover segurança, sustentabilidade, presente desde como organiza-se a leitura desse texto na sua tela, leitor, até como você se veste, as decisões que toma sobre o que comer, as vestes que te seduzem no corpo da sua pessoa amada. Na praga do seu celular (que muda todo ano para um jeitão mais bacana e sexy, menos para o seu bolso). Mesmo com essa onipresença na vida cotidiana, por que ainda os políticos brasileiros quando convertem-se em gestores públicos não conseguem perceber a importância do bom projeto?

Será que mesmo vivendo no monumento astronômico ao design que é Brasília eles não conseguem sensibilizar-se para a relevância de como o mundo material se organiza? Como nos serve e nos explica?

Todo o arcabouço legal e jurídico brasileiro que orienta a produção pública dos objetos que são o universo material onde existimos e que deveriam servir à sociedade, como esfera pública, despreza o bom projeto e o desenho.

Optam as leis por ignomínias como “economicidade” que acabam custando caro, que ferem, matam, e pior, que embrutecem a todos nós como nação.

Repito: dos logos às calçadas, das placas, das marcas às sinalizações, dos edifícios públicos à cidade; todo o sistema de coisas e de serviços que deveriam dar forma pública ao Brasil, são, por força legal, por mediocridade administrativa, escolhidas sem dar a devida ênfase ao papel do projeto e do design.

Tornam-se assim, coisas inertes a nos suplantar, plenas em sua vitória.

Lei de licitações, RDC, Minha Casa Minha Vida, marcas burras, burocracia, desinformação, falta de transparência, websites estúpidos, serviços mal organizados, são os monstros reinando no sonho da razão brasileira.

Curiosamente o design “privado" brasileiro é cada vez mais admirado e desejado pelo mundo. Assim como nossa força cultural é estupenda pela sua doçura, oferecendo ao planeta o tal amor ausente da bandeira. Amor pela natureza e pelo humano. Pelo gozo em estar vivo.

Esses designers conquistam a todos com inteligência vívida. Com formas, materiais, marcas, edifícios, roupas, gráficas, que são também mensagens sobre um novo mundo ainda a ser conhecido, enraizado que é na nossa singularidade.

Mas o que acontece que as leis não espelham essa graça? As leis do país que regem como devemos desenhar o bem público ignoram a própria beleza nacional.

Alguém deve estar feliz. Será o dono da empresa de letreiros? Claro que não. São aqueles que podem vender esse bem público desprovido de graça, pois gasta pouco. São tão malditos em sua contribuição ao país que já ocupam os próprios presídios que construíram sem projeto executivo. Logo, conjuguemos o verbo da moda, na modinha atual: rebelear-se-ão?

Portanto o que quer o brasileiro é que gaste-se bem. Que seja belo, sustentável e que dure, que venha a ter sentido para as gerações futuras, que possa vir a ser considerado patrimônio cultural um dia.

Gastar bem é enfatizar o plano, o projeto e o design pois estes ofertam coerência pública ao cidadão, imerso está ele num oceano de formas privadas belas e sedutoras.

Gastar bem preenche a alma coletiva e cria identidade perene. Além de evitar a cadeia.

O abortado logotipo do prefeito Crivella pariu um processo melhor que pode vir a ser belo: a ideia agora é fazer um concurso para a marca do Rio. Que seja profícuo nesse caminho, e que esta futura marca possa ser escolhida através de um bom processo público, transparente, com muito rigor e excelência. Assim conta a própria história da cidade.

Em 1965, o concurso da marca do Quarto Centenário, além de premiar Aloísio Magalhães, premiou a todos com um emblema eterno. Em 2015, quando do concurso da marca da celebração dos 450 anos, não venceu apenas a Crama Design, mas venceram todos os cariocas com um signo que é, literalmente, a cara do Rio. Para inovar e fazer bem feito, basta, muitas vezes, olhar para a nossa história.

A tradição do Rio é o compromisso com o bom desenho, com o projeto. Está presente pela cidade. Basta ter olhos de ver. E sabedoria em gastar bem.

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