“Prefiro morrer a voltar para o crime”
Ex-integrante do Comando Vermelho, maior facção criminosa do Rio, procura vida longe do tráfico Ele teme ser morto por “maus policiais”
A última vez que Fabio Pinto dos Santos, de 46 anos, posou para um fotógrafo foi há sete anos, para sua ficha em um presídio federal de segurança máxima.
Hoje, na rua, ele se enquadra, rígido, como para uma foto de 3x4 e olha para a câmera desafiador.
– Relaxa, assim você dá medo.
Diante da sugestão da repórter, Fabio respira, sorri, mexe a boca, agita os ombros e se solta. Solta até uma longa e forçada gargalhada pouco depois (a única) quando perguntado se já pagou muito dinheiro a policiais.
– Vamos deixar esse assunto quieto. Melhor, né?
Fabio Pinto dos Santos, conhecido como Fabinho São João, era um dos múltiplos braços armados do segundo escalão na cúpula do Comando Vermelho, a maior facção criminosa do Rio, criada em 1979 no presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande.
As crônicas policiais o descrevem como um dos principais líderes do comando, chefe do tráfico do morro do São João e de Manguinhos, na zona norte da cidade, sequestrador, invasor de morros rivais, e figura presente em múltiplos confrontos armados com a polícia. Ele minimiza seu papel: “Tenho amigos, tenho moral na facção, sou respeitado, mas eu não tomava decisões.”
Fabio, no entanto, não nega sua participação. Descreve alguns dos seus crimes e fugas mas, após sete anos seguidos preso, e com mais de 20 anos de prisão nas costas, quase a metade da sua vida, quer apagar seu currículo e recomeçar.
Suas anotações policiais se referem a roubos, extorsão mediante sequestro, homicídios, porte de armas e entorpecentes, formação de quadrilha e latrocínios, embora tenha sido condenado em apenas três processos: um pelo assalto a um carro forte em 1989, que causou duas mortes, e mais duas sentenças por associação ao tráfico de drogas.
“Foi tudo por burrice. Entrar no crime foi o maior erro da minha vida. É uma vida terrível, de muito sofrimento para mim e minha família. Eu só quero mais uma oportunidade”, promete.
Depois de sair da prisão em setembro passado, com sua sentença cumprida, Fabio, avô e pai de cinco filhos, procurou a Central Única das Favelas (CUFA), uma ONG que visa à integração dos jovens de favelas dominadas por facções rivais, e escreveu uma carta de boas intenções, que entregou em mãos a um juiz e um desembargador.
Nela afirma sua determinação de sair do crime e seu medo de ser vítima de — ele não generaliza — “maus policiais”. “Tenho medo de ser sequestrado e ter que recorrer aos amigos [da facção] para pagar um resgate porque eu não tenho mais nada. Se eu fizer isso vou ter que devolver o favor, e isso significa voltar. E prefiro morrer a voltar ao crime”, diz ele.
O temor pode parecer algo estrambólico, mas ele conta que em 1996 ficou em cativeiro por cinco dias no porão de uma casa, sem comida e sem banheiro, algemado junto a outros três criminosos, sob o controle de policiais. Não foi liberado, afirma, até que seus familiares pagassem mais de 30.000 reais, dois carros e joias. “Se aproveitavam das boas condições da minha família”, afirma. Fabio relata também com frieza o sequestro, em 2009, da sua mulher e do filho, que tinha dez meses, durante umas nove horas, e vários outros episódios obscuros em que policiais corruptos o levaram, encapuzado, à beira da morte.
Fabio aparece na entrevista, embaixo do viaduto de Madureira, sede da CUFA, vestido com uma polo da Reserva, jeans e sapato esportivo branco. Dirige um carro que, novo, vale uns 100.000 reais. “Tudo que tenho hoje é da minha família. Eles sempre estiveram bem. Eu perdi tudo”.
Fabio nunca foi um traficante comum. Filho de um contador e uma professora, criou-se no bairro de classe média, o Engenho Novo, e frequentou escolas particulares. Nunca lhe faltou nada e não subiu o morro até se tornar o dono de um. Fabio tampouco consome drogas e diz que passa mal com maconha, lhe provoca vômitos. “Sei que soa hipócrita porque eu vendia, mas sou contrário, não suporto droga. E não sou o único: 98% dos traficantes do Rio hoje não usam droga, no máximo fumam maconha”.
Fabio não foge das perguntas nem mesmo dias depois da entrevista, é educado, não recorre a gírias e fala bem o português. Ele terminou o ensino médio e passou num vestibular na prisão. Houve uma época em que queria estudar Gestão Ambiental, hoje quer estudar Direito. Na prisão, conta que ele sempre era chamado para falar com as autoridades, e acha que por isso era considerado uma espécie de líder.
Sobre a guerra desatada nas prisões entre sua facção e o Primeiro Comando da Capital, depois de anos de sintonia, ele afirma que soube pela imprensa e não faz questão de opinar. Apenas diz: “Uma guerra agora? Quem vai sair vencedor disso num momento em que o Governo está sufocando tanto? Teriam que se unir, não para fazer o mal, mas para lutar para que a situação na prisão melhorasse.”
Do roubo de carros ao domínio do morro
A primeira vez que Fabio pegou uma arma foi quando ele tinha uns 17 anos. Foi um degrau a mais numa carreira que começou cedo, roubando carros e motos para passear com as namoradas e “tirar onda” com os amigos. As facções e o tráfico naquela época não tinham a presença e o peso que têm hoje no Rio. Ele, embora continuasse fazendo cursos e levando uma vida familiar normal, sempre queria mais e passou a assaltar postos de gasolina. “Me embriaguei de sucesso. Naquela época, depois da ditadura, via tudo aquilo como uma revolução, contra o Estado, contra tudo. Estava totalmente enganado”.
No final, sua fama como motorista o levou a ser procurado por criminosos mais organizados que ele e seus amigos do bairro. Começou a assaltar bancos. Foi no assalto a um carro forte em 1989 que foi preso. Morreu um policial e um segurança. Ele assegura que não atirou e que nunca matou ninguém. “Sinto muito por eles, pô”. Foi sentenciado a 28 anos de prisão, pena que acabou reduzida e substituída por outras penalidades que viriam mais tarde.
Um ano depois da sua detenção, em 1989, Fabio fugiu do presídio Ary Franco, no Rio, hoje conhecido pela convivência dos detentos com ratos, insetos e morcegos. Ele e mais seis serraram uma das grades, e com ajuda de uma corda feita de panos pularam de uma altura de 10 metros. A grade serrada foi depois colada com grãos de arroz cozido, conta a crônica da fuga do Jornal do Brasil.
Em 1991, foi recapturado, e em 1992 acabou sendo beneficiado por um habeas corpus que deu a ele o direito de aguardar em liberdade o julgamento do episódio do carro-forte. Foi nesse período que, diz ele, se envolveu de vez no tráfico. A sentença chegou em 1998, e Fábio ficou preso por mais dez anos, até conseguir progressão da pena para o regime semiaberto. Na primeira visita que fez à sua casa, desapareceu. Explica: “Lá de dentro do presídio me avisaram que eu seria sequestrado, e resolvi sumir”.
Em 2009, com documentos falsos, e quando tinha formado uma nova família em Santa Catarina, foi recapturado. “Pensei que ali ia poder começar de novo, que ninguém ia me achar...”, diz ele, mas sua prisão era, na época, uma das prioridades da polícia. O acharam seguindo os passos da sua família, que foi comemorar o nascimento de seu filho mais jovem no sul do país. Fábio, com vários quilos a mais, foi preso e mandado para um presídio federal de segurança máxima.
Foi seu pior pesadelo: 22 horas do dia trancado na cela diminuta, e a única coisa a fazer era malhar, orar, malhar, orar, e a dádiva de duas horas de banho de sol, “que nunca eram duas horas”, e livros de Stephen King e de autoajuda. Era muito tempo para pensar. “Quando você entra ali, não pode nem levantar a cabeça. O primeiro que te dizem é que você não tem direitos e o segundo é que você não pode esquecer que não tem direitos”, lembra.
Foi na prisão em Mossoró (RN), a 2.400 quilômetros da sua família no Rio, que Fábio pendurou um lençol para se enforcar. No minuto final, recuou. E, hoje, diz que se convenceu de que devia ser seu fim como criminoso. Sua mãe, que nunca aceitou um presente dele, deixando claro que achava que vinha de dinheiro sujo, adoeceu. Seu pai morria e seus filhos cresciam sem ele. É falando deles, depois de uma hora de conversa, que Fabio quebra pela primeira vez. Chora.
A facção apoia sua saída, diz ele: “A maioria quer sair, só não sabe como”. "O crime não permete que você finja que saiu. Não existe essa possibilidade. E eu jamais aceitaria, nunca daria essa oportunidade se não tivesse a certeza de que ele tomou a decisão de ficar de fora", assegura Celso Athayde, presidente da CUFA, que ofereceu a ele um emprego como coordenador de um programa de motoboys para ex-presidiários de facções rivais.
– Você acha que conseguiria se acostumar a ganhar pouco e trabalhar muito?
– Consigo. Eu só quero restaurar minha dignidade.
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