Burning Man: essa coisa que arde no deserto
Mistura de experiência sociológica e festival artístico-musical (Nevada, EUA) completa 30 anos
No Burning Man há templos, gramofones e ovelhas gigantes. Há faróis, cabines telefônicas, javalis de aço e pirâmides de madeira. Há muita, muita gente nua. Há jaulas. Há discos voadores. Há um Boeing 747.
Na verdade, é mais fácil falar do que não há aqui, uma semana por ano – a última edição terminou há poucos dias –, num deserto de Nevada (EUA). Primeiro, não há dinheiro. Cada participante se vira para dormir, comer e ter água, e só se pode comprar gelo e café. Além disso, nesta era de macrofestivais infestados de logotipos, não são permitidos patrocínios privados ou públicos, de modo que as festas e as centenas de esculturas são autofinanciadas com ajuda de algumas bolsas artísticas da organização. Tampouco há espectadores. Todo mundo, diz o decálogo que é a bíblia do Burning Man, deve participar de alguma forma. Os organizadores costumam repetir um mantra: “Ao borrar a linha que separa o público do artista, todo mundo se torna um superastro”.
Como esta, abundam as definições solenes do Burning Man (literalmente “homem queimando”). “Um lugar de polos opostos: escuridão e luz, caos e ordem, alegria e dor”, diz John Hurley, do coletivo BAAAHS, uma espécie de trio-elétrico com DJs em formato de ovelha gigante. “Aqui me perco e me encontro.” Para Sarah Haynes, que organiza seu próprio acampamento de amigos, o Plan B, este é “o maior playground para adultos do mundo”. “Algo que desafia você a sobreviver e se divertir”, descreve Bernardette, de 45 anos, com uma flor prateada gigante na cabeça, “e cria uma comunidade”.
Daria a impressão de que, em vez de um festival, estão falando de uma seita. Ninguém sabe definir muito bem do que se trata tudo isto. Afinal de contas, uma brincadeira frequente entre os burners é chamá-lo apenas de “that thing in the desert” (“essa coisa no deserto”).
De festa de amigos a macrofestival
O Burning Man cresce sem parar desde 1986, quando Larry Harvey e Jerry James queimaram uma figura de madeira numa praia de San Francisco. O que parecia uma reunião de amigos hippies se tornou, meia década depois, uma festa com mais de mil pessoas, e se mudou para o deserto.
Em 1996, quando Sarah Haynes veio pela primeira vez, não havia ingressos nem ruas sinalizadas. “Disseram-nos apenas para levarmos uma bússola e procuramos um sujeito que estaria de pé na estrada. Ao encontrá-lo, ele nos deu instruções como ‘Sigam um quilômetro e virem 35 graus à direita, depois seis quilômetros e virem 90 graus à esquerda…’ Era como a caça do tesouro”, recorda Haynes, “e não tínhamos nem ideia do que encontraríamos”. Afinal era um deserto cheio de artistas, anarquistas, nudistas e pessoas construindo e queimando coisas, algo que a deixou tão fascinada que a faz voltar sucessivamente nos últimos 22 anos.
Hoje o Burning Man ronda os 70.000 participantes. Os ingressos (entre 390 e 1.200 dólares, ou seja, de 1.275 a 3.930 reais) se esgotam em segundos, e com cambistas o preço pode multiplicar. Cada vez mais famosos comparecem, caso da empresária Paris Hilton, da supermodelo Cara Delevigne e da cantora Katy Perry, que neste ano publicaram fotos cheias de areia. Os executivos do Vale do Silício, a meca da tecnologia, são assíduos: o primeiro doodle (logotipo especial do Google) na história, em 1998, foi uma espécie de aviso de “fora do escritório”, porque os fundadores do buscador haviam se mandado para o deserto.
Esse furor tem consequências. Apesar de o decálogo de princípios exigir “autossuficiência” e “inclusão radical”, alguns participantes endinheirados foram construindo um festival personalizado, separado do resto, chegando de avião para evitar os congestionamentos de 14 horas, levando chefs e pessoal de limpeza e dormindo em quartos com ar condicionado, construído por terceiros. Alguns pagam cerca de 10.000 dólares (quase 33.000 reais) por semana, segundo fontes de acampamentos de luxo. O Cirque Gitane, por exemplo, tem música em vivo, um salão de banquetes e ioga para os acampados. “Este é um mundo paralelo”, comentava alucinado, numa dessas festas, um jovem israelense que dormia sufocado numa barraca.
Alguns burners passam anos criticando o crescimento dos grupos exclusivos e sua tendência a criar classes em plena semana de utopia. Esse ano a tensão chegou ao seu ponto máximo com o White Ocean, um acampamento fundado pelo filho de um milionário russo com a participação de vários DJs famosos. O coletivo anunciou em um comunicado: “Ontem à noite uma gangue de hooligans atacou nosso acampamento, nos roubou, cortou nossos cabos elétricos e destruiu nossa infraestrutura. Foi uma confirmação absoluta e definitiva de que alguns acreditam que nós não merecemos estar no Burning Man”. Os organizadores defendem que seguem os mandamentos do evento: suas festas são democráticas, de livre acesso e, como outros acampamentos, dão comida e bebida a muitos participantes do Burning Man que não acampam com eles e não pagam.
A raça é outro dos temas polêmicos. 80% do público em 2015 se definiu como branco, algo que ninguém explica. No ano passado Larry Harvey, fundador do Burning Man, disse: “Acho que os negros não gostam tanto de acampar como os brancos”. A organização continua pedindo paciência, mas o certo é que, em três anos, a proporção de participantes de outras raças subiu somente 4%.
Viver sem relógio
Pergunte que horas são a alguém no Burning Man. Irá olhar para cima e provavelmente dirá: “É de dia” ou “é de noite”. Há música (eletrônica, quase exclusivamente) 24 horas, e uma agenda cheia de atividades (Oficina de astronomia? Acroyoga? Tantra? Lavagem de pés? Curso para bater, e aprender a dar descargas elétricas? De arrotos? Escutar seu DJ favorito enquanto toma banho em um lavador de carros?) que é impossível de se cumprir. Muitos optam, simplesmente, em pegar a bicicleta e andar sem rumo. Os acampamentos estão agrupados em um semicírculo gigante, construído ao redor da figura de um homem. Isso se chama “cidade”. Os quilômetros de deserto nos quais é possível andar sem rumo certo são conhecidos, simplesmente, como “a praia”.
E em meio ao frenesi, existe um urso de pelúcia tirando uma soneca, um casamento tradicional chinês, uma mulher de 78 anos com turbante dourado, que mente porque lhe dá raiva admitir que vem pela primeira vez, um ex-militar reformado do Afeganistão que compartilha abraços, um grupo de velhos hippies que serve água com supostas propriedades milagrosas. E Zach Washington-Young, que em 2012 perdeu dois de seus melhores amigos no acidente de ônibus que o deixou na cadeira de rodas. Viajou de Liverpool com uma bandeira gigante, com suas fotos em preto e branco. “Eles gostariam de estar aqui”, diz.
Os 10 princípios do Burning Man
1. Inclusão. "Todo mundo pode fazer parte do Burning Man. Damos as boas-vindas e respeitamos o desconhecido. Não existem requisitos para participar da comunidade".
2. Economia do presente. "Dar um presente não significa que deva existir uma troca por algo de valor igual", esclarecem as regras do festival.
3.Desmercantilização. "Queremos criar um entorno sem patrocínios comerciais, transações e anúncios".
4.Autossuficiência. "O Burning Man ajuda o indivíduo a descobrir, exercer e depender de seus próprios recursos".
5.Liberdade de expressão.
6.Esforço comum. "Valorizamos a cooperação e a colaboração. Queremos criar conexões, espaços públicos e arte que ajudem na interação".
7.Responsabilidade cívica. Os participantes devem respeitar a lei e assumir responsabilidade por suas ações.
8.Não deixar marcas. "Nós nos comprometemos a não deixar rastro de nossas atividades. Limpamos e tentamos deixar os locais melhores do que quando os encontramos".
9.Participação. "Todos são bem-vindos para trabalhar e brincar".
10.Imediatismo.
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