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Contra a besteira do natural

A alimentação natural não existe, é apenas uma reivindicação para vender mais

O justo do Natural (UNPLASH)

Aconteceu ontem mesmo: no comunicado de imprensa da abertura de um restaurante li que no estabelecimento se cozinhava com ingredientes naturais. “Cara, é claro!”, pensei, “Ninguém vai cozinhar com ingredientes sintéticos, como kevlar ou grafeno!”

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O natural prolifera. Está na moda, por exemplo, vinhos naturais, aqueles que são obtidos após uma viticultura na qual não são usados produtos químicos e que, muitas vezes, têm sabor horrível. Nos supermercados são vendidas latas de molho de tomate 100% natural, como se brotasse diretamente do interior da terra – que estrago, quanto temos que limpar.

Apesar de que a natureza “não é bonita nem adorável, é matar ou morrer” – como disse Robert Crumb – o natural está na moda. Mas a utilização da palavra “natural” contém mil armadilhas.

Eu acho que muitas vezes, quando alguém usa o termo para falar de um tipo de alimentação teoricamente saudável e de uma cozinha na qual não se use ingredientes processados, faz isso para subir no vagão rentável do "hiponga". Mas existe alimentação natural no século XXI?

Digamos que alguém está comendo uma salada de vegetais de sua própria horta. Tudo muito natural, certo? Na verdade, não.

Os legumes que consumimos atualmente, mesmo o que nos vende o pajé mais conectado com o Universo, são muito diferentes das variedades originais. Na natureza, uma berinjela está cheia de espinhos, tem pouca carne, é muito fibrosa e fica marrom assim que cortamos. As cenouras? Umas raízes duras, fibrosas, amargas e praticamente intragáveis. Acontece que séculos de agricultura mudaram sua aparência e seu sabor, como o de quase todas as frutas, verduras e hortaliças. Porque nós domesticamos e adaptamos aos nossos gostos, afastando-as, precisamente, da natureza.

O mesmo acontece com a carne. Os animais que comemos têm pouco a ver com seus antecessores, que a natureza “criou”. Talvez, a única coisa que comemos em seu estado natural, é o peixe que não vem da aquicultura, os cogumelos que comemos na floresta e outras frutas provenientes de coletas silvestres. Mas não se engane, quando saímos para colher alimentos não vamos à floresta, vamos ao supermercado.

Se o natural é aquilo que não foi criado pela mão do homem, pouco podemos falar de comida ou alimentação natural, porque quase tudo que comemos hoje foi modificado pela intervenção humana.

Então? Por quê? Por que gostamos tanto de comer coisas naturais?

Um dos motivos mais poderosos poderia ser a quimiofobia, o medo de tudo que tem uma procedência “química” em oposição a uma filia pela busca quimérica do “natural”. Mas como conta J.M. Mulet em seu livro Los produtos naturales, ¡vaya timo! (Os produtos naturais, que fraude!) – onde também coloca em dúvida a agricultura e a pecuária ecológicas – a química faz parte da natureza.

Como contou Mikel neste post há alguns anos. “Os ovos que você come têm ácido octadecanóico. As bananas, E-306 (tocoferol). Os mirtilos, hexanal, alfa-terpinaol, benzaldeído e até 3-metil-butanoato”.

A quimiofobia, a moda do eco-mauricinho, esse querer se sentir como os primeiros povoadores de um canto bucólico da floresta... como dizia o anúncio de um refresco muito pouco natural, quer negar que o ser humano é extraordinário e ao retornar a uma origem na qual, com toda naturalidade seríamos alimentos de feras selvagens, preferimos dar as costas para milhares de anos de civilização e de organização desse caos que é a natureza implacável.

Não tenho a mínima intenção de defender a indústria de alimentos. Ou promover o consumo de alimentos processados. Mas o natural não existe, é apenas um eufemismo para suavizar que cada vez estamos mais distantes, precisamente, da Natureza.

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