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É tempo de leis e tribunais mais rígidos no Brasil pós-Lava Jato

Evento da FGV debate legislação que desvendou o megaescândalo, mas não pode evitá-lo

Carla Jiménez
O procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol na Câmara dos Deputados, no dia 22 de junho
O procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol na Câmara dos Deputados, no dia 22 de junhoM.Camargo (Fotos Públicas)

Falar de obras públicas e Direito num evento patrocinado pela empresa Andrade Gutierrez pode soar suspeito no Brasil de hoje. Num momento em que a Justiça escancara um dos maiores esquemas de corrupção da história, onde as empreiteiras se associaram a políticos sob a legislação vigente, a pergunta é: onde estava esse mesmo Poder Judiciário quando essa trama subterrânea, descoberta pela Lava Jato, se movimentava livremente? Um grupo destacado se reuniu na semana passada para destrinchar as razões pelas quais se chegou a esse labirinto de desvios de dinheiro. A convite da Fundação Getúlio Vargas, juristas, ministros dos tribunais de Justiça, de contas públicas e representantes de entidades empresariais levaram a legislação brasileira e seus agentes para o banco dos réus.

O secretário executivo do Programa de Parcerias e Investimentos do Governo Temer, Moreira Franco, trouxe a frase mais ouvida no Brasil dos últimos meses: “As instituições estão funcionando. A Lava Jato funciona porque as instituições funcionam”. Mas por que ela precisou existir é o que não se logra responder. “Como o Brasil, com um sistema de leis tão complexo e elaborado, gerou um dos maiores escândalos de corrupção da humanidade?”, questionou Felipe Santacruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em um dos paineis do encontro Segurança Jurídica e Governança na Contratação de obras Públicas, realizado pela FGV no dia 20, que contou com apoio do EL PAÍS.

“É que as instituições estão funcionando bem no aspecto repressivo”, observou Venilton Tadini, presidente da Associação Brasileira de Infraestrutura e indústrias de Base (Abdib). Mas falharam no controle prévio, completa. A tarefa não parece fácil de qualquer forma. “Com um sistema de corrupção tão imbricado na sociedade brasileira qualquer lei seria vencida por esquemas corruptos”, avalia Benjamin Zymler, ministro do Tribunal de Contas da União. Zymler fala com a experiência de quem acompanhou a ebulição da Petrobras em seus anos dourados depois descoberta do pré-sal. Como órgão fiscalizador, o Tribunal sempre cobrou da Petrobras o envio de informações básicas sobre as obras a serem executadas pela companhia, mas os dados não eram enviados, alegando-se “pretenso sigilo de negócios”.

O ministro chegou a levar essa dificuldade para a presidenta Dilma Rousseff em 2011, quando assumiu por dois anos a presidência do TCU. O que ouviu parecia profético. “Expliquei a ela que estávamos sem o fluxo de informações que permitisse o controle mínimo sobre a Petrobras. A presidenta Dilma me disse: ‘Benjamin, se você conseguir controlar a Petrobras agradeço muito, pois nós também não conseguimos controlar. É uma criatura maior que o criador”, contou Zymler.

A criatura se esparramou pelo Estado brasileiro a despeito da legislação e órgãos de controle, como sintentizou João Otávio de Noronha, ministro do Tribunal Superior de Justiça, que acaba de assumir o Conselho Nacional de Justiça. “Gestores públicos e privados em um envolvimento sórdido, que alcança o Legislativo, com fatiamento de cargos públicos, onde a diretoria da Transpetro [responsável pela logística da Petrobras] é indicada por um senador, a presidência do Banco do Brasil por outro, e assim por diante. Essa é a administração brasileira hoje”, disse Noronha.

Punição, leniência e prioridades

Como empresa, leia-se a companhia com uma função social para o coletivo, e não os empresários. Ela poderia seguir o curso dos acordos de leniência, de modo que o infrator colabore com a Justiça para obter benefício na pena e garantir que a companhia continue tocando suas obras. Mas, num momento em que presidentes de empreiteiras ainda estão presos, as métricas e parâmetros da Justiça começam a ser questionados. “Um empresário corrupto é tão pernicioso quanto o traficante de drogas. Não vejo tanta diferença, tudo é repugnante. Tudo agrava a pobreza no Brasil”, afirma Noronha. Por isso algumas penas poderiam ser repensadas. “O traficante perde seus bens quando pego pela Justiça. Por que o empresário também não pode perder os seus?”.

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O procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol, aliás, classifica a punição a crimes por corrupção no Brasil “uma piada de mau gosto”, disse ele aos deputados no último dia 22, quando foi ao Congresso defender a aprovação das medidas anticorrupção com penas mais severas a ilícitos. Dos 200 bilhões de reais desviados, somente 3% são recuperados.

O país, entretanto, mostra reação a partir do momento em que avança nas investigações com poderosos na cadeia. “Pela primeira vez o rico foi preso com o ladrão de galinha. Os apadrinhados foram presos, agora está chegando aos padrinhos”, afirma Noronha.

A legislação que deveria organizar as compras públicas também precisa ser repensada. A lei 8666, criada em 1993 sob clamor popular que cobrava mais rigor contra o superfaturamento de obras, não foi capaz de conter o mesmo vício nos grandes projetos tocados pelo poder público. O Estado, por sua vez, precisa eleger prioridades sobre as obras necessárias para o país. O governo passado, por exemplo, preferiu investir em estádios para a Copa do Mundo mas não cuidou do saneamento básico, que poderia ter evitado o zika vírus, observa Santacruz, da OAB.

Para o secretário-executivo Moreira Franco, esta é a oportunidade de reconstruir o ambiente público e privado. No ambiente político, Franco, cujo Governo interino já registrou três baixas por suspeitas de corrupção,  acredita que a sensação de insegurança jurídica que o país vive é agravada neste momento em que o país tem dois presidentes, o interino Michel Temer, e Dilma, como presidenta afastada.

O conceito de segurança jurídica, porém, passa por todas as instituições e sistema jurídico, no sentido de ter a clareza das regras do jogo, que hoje não estão funcionando bem. O ministro do STJ, Paulo de Tarso Sanseverino, lembrou a doutrina de proteção de confiança, que surgiu na Alemanha, para proteger uma pensionista que se sentiu lesada pelo Estado alemão nos anos 50. O Governo sugeriu à senhora alemã que se mudasse de cidade para obter sua pensão. Mas após se mudar, o benefício lhe foi negado. Os tribunais então invocaram o princípio de confiança para garantir-lhe o direito à legítima expectativa criada. 

Como lembrou Mario Engler, professor da Escola de Direito da FGV, em São Paulo, a ética é o que se faz além da lei, e requer que o sistema Judiciário ajude a disseminar a cultura do que vai além da obrigação legal.

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