Liniker ‘versus’ Lineker: o mesmo nome para duas vozes da nova geração
O mundo quer um 'novelão', mas os dois músicos que brilham na cena independente negam a rixa
Se a vida real fosse uma novela, o enredo seria fácil: um cantor jovem, talento emergente da música brasileira, desenvolve feliz a sua arte até o dia em que descobre que circula por aí um concorrente... que ostenta seu nome. E olha que é um nome difícil: Lineker (ou a versão abrasileirada dele, Liniker). Ambos são excêntricos, orgulhosos do próprio corpo, rasgam a voz e lotam casas de shows do circuito cultural independente. Em segredo, eles competem.
Tudo seguiria sob controle, não fosse o público perdido, convites trocados, pessoas indo à apresentação de um pensando que vai à do outro, sendo que um é branco e tem a voz aguda, o outro é negro, vozeirão grave. Como isso é possível? Não. Definitivamente não há espaço no showbiz para dois herdeiros do nome de Gary Lineker, o futebolista inglês que brilhou em três Copas do Mundo, de 1986 a 1994, e sem saber saiu batizando crianças no Brasil. “Vou eliminá-lo”, diriam em uníssono diante de uma tela da TV em que um assistisse ao outro. Mas a realidade pode ser mais generosa.
O EL PAÍS toca a campainha de um apartamento no centro paulistano, e Lineker, um mineiro de 29 anos nascido em Bambuí, abre a porta. No segundo beijinho no rosto já aparece ele, Liniker, negro alto, 20 anos, de Araraquara, no interior de São Paulo. Enquanto aguardavam a repórter, os dois almoçavam, tricotando sobre a vida, a arte e as coincidências que inspiraram aquele encontro. “Essa excentricidade vem de Aquário! Nós dois temos o mesmo ascendente”, diz o mais velho (cujo signo é Leão) ao mais novo (de Câncer). As risadas são fartas e o amor, infinito.
Liniker e Lineker são tímidos na pessoa física, expansivos na pessoa artística, capazes de chocar os caretas
Ainda bem. Indo além das aparências, Lineker Henrique de Oliveira e Liniker de Barros Ferreira Campos têm de fato muito em comum, a começar pelo desejo de acolher essa espécie de irmão gêmeo, como se tivessem sido separados no nascimento e redescobertos há pouco em suas vidas. Começaram na música por influência de casa: o primeiro, acompanhando o pai na Igreja, agarrado às suas pernas enquanto ele tocava o violão; o segundo, participando dos encontros dos tios músicos e das apresentações da mãe dançarina de samba rock.
São tímidos na pessoa física, expansivos na pessoa artística, capazes de chocar com a capa de um disco em que um aparece correndo nu no pasto verdejante (como fez Lineker, com o recém-lançado EP Verão) e ao usar saia, turbante, barba, brincos e batom (como faz Liniker em seu show de divulgação do EP Cru). Ambos estonteantes, mesmo quando econômicos, sentam no chão da sala de pernas cruzadas, sorriem com os olhos e apertam fraternalmente as mãos. Fora do palco, poderiam levitar. Nele, querem catarse.
“No show, a entrega é muito intensa”, diz Liniker, que debutou com Cru em outubro do ano passado e desde então não parou de fazer shows. Lineker, que está há mais tempo na estrada e lançou seu primeiro disco, eLe, em 2012, complementa: “A gente ativa uma outra camada, que existe sob a pele”. O trabalho de ambos resgata a música brasileira, buscando levá-la adiante, agregando referências musicais de outros lugares e ostentando uma enorme bandeira de liberação. Parecem sintonizados, ainda que não se conheçam intimamente, a não ser pelo rumor de amigos e colaboradores preocupados com suas carreiras paralelas.
“Quando o Liniker lançou o Cru, foi aquela coisa, o EP viralizou, e as pessoas, principalmente as mais ligadas à produção musical, começaram a me alertar sobre possíveis confusões”, conta o mineiro, que além de músico é dançarino formado pela Universidade Estadual de Campinas e pesquisador na área de Artes Cênicas. Foi ele quem deu o primeiro passo e escreveu para Liniker, que já sabia de sua existência através de amigas da Unicamp. “Conversamos, trocamos mensagens e achamos que seria estranho trocar de nome, porque já tínhamos nossos trabalhos lançados. Além disso, é o nosso nome de batismo”, conta Liniker. “Todo muito quer que não seja legal. Que seja penoso, rixa, digladiado. E não é. Não quero isso para o meu trabalho, e ele não quer para o dele”.
Mas as confusões acontecem, porque afinal, opina Lineker, "vivemos em um mundo de muita falta de atenção”. Ele não esconde certa intriga com isso: “Estou pelado correndo na capa do Verão, e as pessoas escutam e compartilham o disco no Facebook dizendo: 'Nossa, mas a voz está diferente… Cadê aquela rouquidão?”, conta. A solução que veem para os desorientados é "contar com o bom senso dos programadores culturais, do público e da imprensa”, que podem fazer a distinção entre os dois. "Um trabalho não precisa existir ou deixar de existir em função do outro”, garantem.
Afastada a rixa, ambos decidiram se “colocar juntos”, assumir que é muito provável que o nome de um surja quando se falar do outro, não importa o quanto um seja branco e cante como Ney Matogrosso e o outro seja negro e pareça o Tim Maia de saias. Tanto é assim, que já têm programada a primeira a apresentação juntos, durante a Semana da Diversidade Sexual de Araçatuba (de 16 a 20 de março). Serão dois shows na mesma noite, em que cada um apresenta seu trabalho, mas em um só palco. E, claro, um só coração.
Reportagem em vídeo: Rodrigo Machado
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