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Solucionado o enigma do dente do siso

A diminuição do terceiro molar em nossa espécie deriva de um mecanismo universal entre os mamíferos

Javier Sampedro
A caveira de um “Homo ergaster” do Quênia, incluída no estudo.
A caveira de um “Homo ergaster” do Quênia, incluída no estudo.David Hocking
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Para que eles existem? Aparecem tão tarde que já não fazem falta alguma, e isso quando aparecem. Às vezes, eles se escondem de forma intrincada, enriquecendo os dentistas, ou empurram os outros dentes causando dor e machucados. São os dentes do siso. Quem os inventou? Qual foi a força evolutiva que teve a ideia de bolar esse estorvo buco-dental? Fez o mesmo mal com o nosso cérebro? Este é o enigma evolutivo dos dentes do siso e que acaba de ser solucionado por cientistas australianos. A resposta, em resumo: nós, humanos, não somos nem mesmo os únicos que tem isso.

Nossos ancestrais, os hominídeos (homininos, tecnicamente), tinham um terceiro molar decente: até quatro vezes maior do que o nosso, e com uma superfície plana obviamente adaptada para mastigar. Nunca se entendeu muito bem como essa obra-prima da natureza se deteriorou a ponto de produzir o nosso dente do siso, embora não tenham faltado hipóteses elaboradas sob medida para explica-lo: ora as mudanças de dieta, ora este ou aquele avanço cultural, ou, em todos os casos, algumas teorias que delegam à seleção natural a árdua tarefa de destruir um dente sem mexer muito nos outros. E que, é claro, são exclusivas da evolução humana, sem precedentes nos 600 milhões de anos de história animal.

A bióloga do desenvolvimento Kathryn Kavanagh, da Universidade Massachusetts em Dartmouth, propôs em 2007 um modelo teórico do desenvolvimento da dentição nos mamíferos. Ela se baseava em dados obtidos com ratos e explicava os resultados, que eram bastante complicados, com um modelo simples de “inibição em cascata”: quando um dente se desenvolve, emite sinais que ativam ou reprimem os seus vizinhos, e a proporção entre esses dois sinais determina o tamanho dos dentes vizinhos.

Um dos colegas de Kavanagh naquele trabalho, Alistair Evans, da Universidade Monash em Victoria (Austrália), lidera hoje uma pesquisa publicada pela Nature em que aquele modelo se estende aos hominídeos. O estudo revela que o modelo da inibição em cascata de Kavanagh pode explicar desde a degeneração do terceiro molar nos australopitecos até o modesto e incômodo dente do siso que oprime o Homo sapiens.

Nossos ancestrais tinham um terceiro molar decente: até quatro vezes maior do que o nosso, e com uma superfície plana obviamente adaptada para mastigar

Nos hominídeos mais primitivos — os mais próximos do chimpanzé, como os ardipitecos, australopitecos e parantropos —, a variação do tamanho e das formas relativas dos molares é meramente em função da posição: os dentes tendem a crescer mais na parte posterior da boca, o que provoca o gigantismo do terceiro molar, e as proporções entre alguns dentes e outros são constantes, sem que o tamanho global da dentição no seu conjunto importe muito.

No entanto, há cerca de dois milhões de anos, com o surgimento do nosso gênero (Homo), essas regras gerais se alteraram um pouco: os tamanhos relativos dos dentes passaram a depender do tamanho global da dentição. Isso fez com que a redução do tamanho global da dentição, que é própria da modernidade evolutiva, causasse uma diminuição desproporcional do terceiro molar. Ou seja: o dente do siso seria explicado pela existência de um mecanismo geral, que não precisou exigir coisas muito esquisitas para transformar o terceiro molar em um estorvo ridículo.

De um ponto de vista dental, deixamos de ser vítimas de uma evolução cruel e passamos a ser vítimas da simplicidade matemática. Um avanço e tanto.

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